sábado, 4 de abril de 2015

Les Eaux de Cologne

Ainda devo o final da viagem italiana e algo sobre minha visita a Viena, mas é preciso aproveitar o momento para escrever, e a inspiração agora não poderia ser outra.

Tem o Reno, belo e grandioso. Tem a chuva, chata e constante. Tem o Glühwein, quente e saboroso. Tem a Kölsch, suave e maçante.

E tem os perfumes também, para quem liga para isso...

Colônia não é uma cidade particularmente interessante do ponto de vista turístico. Não possui o charme de Munique ou a concentração de história de Berlim. Para morar, entretanto,  é uma cidade bem interessante. É a quarta mais populosa da Alemanha, com um milhão de habitantes, e é o centro da maior zona metropolitana alemã, com várias outras cidades importantes por perto (Düsseldorf, Dortmund, Essen...) e outras menores, mas com certo apelo turístico (Koblenz, Aachen, Bonn...). Assim, tanto a cidade tem uma infinidade de coisas para se fazer, quanto é fácil fazer bates e voltas pelas redondezas.

A cidade é considerada pelos próprios alemães como uma das mais cosmopolitas do país. Há gente de todos os lugares, e estão mais integradas à sociedade do que em algumas outras regiões. Por consequência, você pode pegar uma lista de nações, tirar um país na sorte, e sem dúvida vai achar um ou mais restaurantes/bares temáticos. Também é a "capital gay" da Alemanha, a cidade com o Carnaval mais insano, e com o transporte público mais zoado (o que significa que todo dia tem uma ou outra linha de trem que atrasa cinco ou dez minutos - e os alemão pira!). Em resumo, a palavra-chave para definir a cidade é "diversidade".

Como o curso de línguas teve a ver com praticamente tudo o que vi e conheci por aqui, seja através dos amigos feitos ou das atividades de lazer, nada melhor do que começar falando da rotina ali.


Alemão in situ

Por causa de problemas de última hora com datas, em vez de ir para o Instituto Goethe em Mannheim, caí na Colônia Brasileira em Colônia, ou, melhor dizendo, Carl Duisberg Center (ou só "CDC"). Isso porque metade (ou mais) dos alunos quando cheguei era composta por brasileiros. Mais de sessenta graduandos do Ciências sem Fronteiras estudando, gritando e se atrasando. Impossível se sentir muito deslocado e, gostem ou não, a massiva presença brasileira tornava o lugar mais alegre. Em fins de fevereiro todos se foram, ficando de brazucas apenas eu e mais dois amigos do doutorado, e o CDC ficou parecendo um bunker após o fim da guerra.

E as aulas? Quatro horas e quinze minutos por dia, cinco dias por semana. Mais o tempo de estudo por conta própria, geralmente uma ou duas horas por dia. Some também a prática diária da língua, em qualquer lugar que você vai. Se isso não é intensivo, eu não sei o que é. Logicamente, depois de quatro meses só fazendo isso da vida, qualquer um sai falando Alemão melhor que um vocalista de banda da Oktoberfest, né?

De jeito nenhum. Em bom Português: ô lingua errada da porra! Sabe quando você aprende inglês e pergunta para o professor se existem regras claras sobre pronúncia, e ele diz "é o caos, só se aprende na marra mesmo". Então, isso resume 90% do Alemão. O uso de artigos segue regras tão bem definidas quanto as do truco. Os verbos são mais irregulares que licitação no Brasil. E as tabelas com as declinações - Jesus, as declinações! - são tão aleatórias quanto uma cartela de bingo. Isso é uma mesa. Você coloca algo sobre a mesa. Mas a coisa fica sobre o mesa. E cada bendita preposição que você usa leva uma declinação. Então, se você achava difícil usar "in", "at" ou "by" em inglês, imagine lembrar de tudo isso E se o diabo do lugar/objeto/pessoa é masculino/feminino/neutro e se você tem que usar o nominativo/acusativo/dativo/genitivo. Ao mesmo tempo. Enquanto fala. Com uma arma na cabeça.

Minha parte preferida (ou não) após os artigos é a posição dos verbos. Eles "normalmente" devem vir na segunda posição, como os Deuses da Lógica gostariam desde o início dos tempos. Eu bebo Coca-cola. Eu gosto de cachorrinhos. The book is on the table. Nice to meet you! Mas toda vez que você usa um verbo auxiliar (como "quero", "preciso", posso") ou uma frase que depende de outra (como "eu gosto de cachorrinhos, porque eles são fofos") o verbo vai para a posição que faz mais sentido: a última, óbvio. Então "eu quero uma pizza gigante com quatro sabores bastante queijo molho de tomate com pedaços borda de catupiry azeitonas verdes e não pretas... pedir". Se você tivesse pedido lá no começo da frase, a pizza já teria chegado. Falando do passado, a mesma coisa: "eu ontem durante a tarde junto com minha irmã meus cachorrinhos fofos e peludos nas suas camas quentinhas com um travesseiro macio e branco alegremente... sufoquei". Claro, contexto é tudo, e nenhum alemão parece desnorteado com isso (ou usa tantas palavras no meio da frase), mas para ouvidos estrangeiros é esquisito pra cacete.

Após alguns choques iniciais, o primeiro passo para melhorar o aprendizado é parar de perguntar "porquê". Línguas não são feitas para fazerem sentido. São construções históricas e não seguem regras claras feitas por um acadêmico metido a espero. Claro, vale perguntar para saber quais as regras gramaticais em jogo, se elas são simples o bastante para serem úteis. Para mim, ao menos, é importante entender as regras e a estruturação da língua para usá-la, outros já preferem aprender só por prática e repetição (o que é perfeitamente possível). Mas não tente descobrir porque um bárbaro germânico decidiu que, ao fazer algo com alguma coisa, todos os artigos permanecem os mesmos... MENOS o singular masculino. Porque isto é uma gata e eu alimento a gata, mas é claro que isso é um cachorro e eu alimento os cachorro. Lógico.

Mas, assim como todas as línguas tem suas ilogicidades e complexidades, todas tem suas partes simples. E eu vou dizer algo que vai arrepiar qualquer um que tenha ouvido um alemão sorridente falar "oi, como vai?" e achar que ele  estava xingando a mãe: a pronúncia alemã é fácil. Quero dizer, ao menos ela faz sentido, pois é uma língua muito fonética. Se você souber como soa cada letra (e cada ditongo, encontro consonantal, vocal com consoante...), pode ler qualquer palavra com razoável precisão. Inclusive aquelas monstruosidades que te fazem pensar como um alemão pode usar alinhamento justificado no Word (o que não é nada demais, pois o que eles fazem é simplesmente juntar palavras, ignorando os espaços e usando uma palavra para "linha de produção automatizada de carros populares amarelos de baixo custo com dois assentos "). Algumas pessoas sofrem bastante, particularmente aquelas que falam inglês como língua nativa, pois há muitas palavras parecidas e é tentador pronunciar do mesmo modo. Mas, para nós brasileiros, é até mais fácil que inglês. A minha impressão é de que não tem tantos sons estranhos e difíceis para nós, como os "there" e "thing" da vida, e aqueles diferentes geralmente podem ser resolvidos com um biquinho ou limpando o catarro da garganta.

Após quatro meses, então, tudo o que posso dizer é que consigo ler e escrever razoavelmente, se tiver um dicionário por perto (pois um bom vocabulário ainda é um sonho distante), falar trupicantemente se necessário, e ouvir o bastante para dizer "uhn?" com uma cara de idiota, fazendo a outra pessoa mudar automaticamente para o inglês. O bastante para viver o dia a dia, não o suficiente para impressionar uma alemãzinha com um papo inteligente.


Vida de colono
  
No primeiro mês eu fui alocado em uma casa no fim do mundo, de onde levava 50-70 minutos para chegar no CDC e no centro da cidade, com dois bondes, um ônibus e alguma caminhada. Isso limitou bastante minhas andanças, mas, logo após minha viagem à Itália na virada do ano, consegui mudar para um local mais próximo (os 20-30 minutos pareciam teletransporte para mim). Como bônus, em vez de uma casa de família como a outra, era um pequeno apartamento em um prédio separado que eu dividi com apenas mais um colega egípcio de CDC. Se, por um lado, estar confortável em casa me faz botar menos o nariz na rua, por outro é essencial para meu bom humor e sanidade.

Estabeleci então uma rotina consistente. Na maioria das vezes, saía do curso às 13:00 e ia direto para casa cozinhar. Essa é uma diferença que o turista geralmente não nota: alemão não costuma almoçar pra valer durante a semana. Para eles, o normal é comer algum lanche ou prato rápido e seguir na atividade, deixando a refeição mais substanciosa e variada para a noite. Refeições "de verdade" em restaurantes costumam ser caras. Então foi rápido cansar das poucas opções próximas ao CDC. Por outro lado, qualquer supermercado é um deleite, cheio de comidas que são caras e especiais para nós, mas perfeitamente normais para eles. A maioria das coisas você pode encontrar em um Angeloni da vida no Brasil, mas com pouca variedade e preços nas alturas. Então, para mim, foi uma festa de presunto cru, queijos fortes, cogumelos frescos, salsichas, peixes defumados/em conserva... Galera de Blumenau: sim, você encontra Rollmops no mercado. Mas é enrolado em pepino e nem de perto tão azedo. Um alemão contemporâneo faria a mesma careta do seu colega paulista ao provar a mortífera especialidade do Vale.

Apesar do "default" ter sido ir do CDC para casa, fazer os deveres do curso e jogar computador, pelo menos algumas vezes por semana eu ficava pelo centro, fosse para almoçar com os amigos, dar uma volta para visitar algum lugar ou comprar algo. Ou voltava para casa e saía de noite. Daí era preciso ter coragem e enfrentar o adversário diário do Inverno: o clima.

A região de Colônia não é fria, para os padrões alemães. A topografia tem muito a ver com isso, pois é mais frio, por exemplo, na Bavária, que fica mais ao Sul. Isso significa que, durante o inverno, tivemos três ou quatro ocasiões em que nevou o bastante para deixar o chão e os tetos brancos. A neve realmente deixa o lugar bonito e atrapalha mais quem anda de carro (embora, em uma ocasião, eu tenha levado o proverbial tombo de bunda no meio da rua, ao escorregar em gelo). Chuva, por outro lado, é arroz de festa, aparece o tempo todo. Mas é muito diferente do Brasil. Só uma vez caiu um toró de verdade, e nada daquelas chuvas pesadas de dias do inverno sulista. A chuva é leve e raramente exige um guarda chuva (se você estiver com uma roupa pesada de frio, lógico).

A coisa mais chata é o céu constantemente nublado. No alto inverno, podem-se passar dias antes de você encontrar um espacinho entre as nuvens para te lembrar que o céu é azul. Às vezes o tempo abre, mas isso significa que o frio será pesado. Nada de esquentar ao sol, o negócio é ficar dentro de um lugar aquecido olhando o mundo pela janela. Durante o inverno, o normal é a temperatura ficar entre zero e quatro graus, com uma sensação térmica uns dois ou três graus menor (mas que os deuses tenham piedade de sua alma se ventar).  Justiça seja feita, a gente passa mais frio no Brasil, pois os interiores não estão preparados para isso. Aqui você não precisa enfrentar todo o dia o dilema ético entre abandonar o abrigo de três cobertores de manhã ou ignorar o mundo que existe além da ponta de seu nariz gelado.

O clima realmente diminui a vontade de sair de casa, mas quem vive aqui não pode ficar preso a isso, senão não faz nada. É botar a bunda na rua e fazer a dança do tira-bota-casaco o tempo todo. No final, acabou sendo muito menos pior do que eu imaginava. Do mesmo modo que a escuridão do inverno: assusta em dezembro e janeiro ter um dia que acaba às quatro e meia da tarde, mas isso muda com uma rapidez impressionante: em março você já tem dias se estendendo até sete e meia (oito e meia, quando entra o horário de verão no fim do mês). No verão, a noite só chega depois das dez. Fico curioso para saber se no outono a diminuição será também tão veloz.

Uma coisa interessante do CDC (e que também existe em outras escolas de idiomas) é a existência de um programa de atividades de lazer. Praticamente todos os dias tinha alguma coisa para ser feita fora do horário de aula. Atividades para todos os gostos, como visitar museus, jogar futebol ou Lasertag (um Paintball menos doído). Nas sextas à noite, saídas para bares ou cervejarias. Em Colônia os estabelecimentos típicos são chamados "Brauhaus", cervejarias de aspecto rústico que servem comida alemã e cerveja. Algumas mais polidas, outras bem estilo taverna. Logicamente, essa era a atividade que eu mais frequentava, pois, além de gostar da comida e da cerveja, curto bastante o clima desses lugares. Mas existe um pequeno problema: a cerveja.

"Problema com cerveja? Na Alemanha??". Calma, calma, amiguinhos, deixem-me explicar. Colônia tem um orgulho grande de sua cultura regional, que possui até um dialeto próprio (o Kölsch, tão bizarro que mesmo os cardápios para os alemães tem que ser bilíngues). Isso inclui também um tipo de cerveja típica, a Kölsch (sim, aquela mesma da Einsenbahn). É uma cerveja amarela, pouco amarga e bem leve para os padrões alemães, tomada sempre fresca em copos pequenos de 200 ou 300ml. Não meu tipo favorito, mas boa mesmo assim (prefiro mais a escura Altbier, da rival Düsseldorf, mas nunca fale isso em voz alta em Colônia!). O problema é: ela está por toda a parte. Difícil entrar em um bar ou restaurante que tenha outras opções, que não passam de uma Pilsen ou cerveja de trigo (de garrafa, não do barril). Os sonhos maravilhosos de balcões repletos de torneiras com cervejas de todas as cores e gostos não se tornam realidade em Colônia, a não ser que você procure um lugar especial ou um pub inglês/irlandês/belga. Nenhum problema para o turista ocasional, mas para o morador que quer provar todos os tipos e marcas possíveis, o supermercado é melhor.

Comida, por outro lado, não é problema. O aspecto cosmopolita da cidade se estende aos restaurantes. Então, além da culinária alemã (que eu adoro), você encontra restaurantes da nacionalidade que quiser. Incluindo um espeto corrido brasileiro que, se não tinha a diversidade de carnes de um original, compensava pela abundância de picanha (sem piadas como "minha picanha na tua abundância", por favor).

O dia a dia já seria novidade o bastante para mim, mas eu preciso mencionar destaques nesses meses. O primeiro não é exclusividade de Colônia, mas algo bem típico na Alemanha: os mercados de natal ("Weihnachtsmärkte", saúde!). Durante todo mês de dezembro, as praças das cidades são tomadas por barracas de comida e badulaques natalinos, com toda a decoração tradicional. Até as cidades pequenas tem os seus, e nas maiores, como Colônia, existem vários. Neles é possível provar o Glühwein, que nada mais é do que um quentão alemão, mas que desce que é uma beleza no inverno. O clima da cidade fica muito feliz e gostoso nessa época, pois os moradores realmente curtem os mercados (não é só "para turista ver"), e todo dia você os encontra movimentados. Em um mundo de pseudo-almoços à base de Currywurst e tranqueiras de padaria, uma passada nos mercados sempre é uma boa opção.

O outro é bem particular daquela zona do vale do Reno: o carnaval. Teoricamente o período de carnaval se inicia às 11:11 de 11/11, mas a comemoração para valer é em fevereiro, como no Brasil. Oficialmente só a segunda-feira é feriado, mas horários de aula e trabalho costumam ser modificados na sexta e/ou quinta, para as pessoas poderem sair às ruas, encher a cara enlouquecidamente e (na segunda) ver desfiles de carros alegóricos. Basicamente é como no Brasil, mas com músicas de Oktoberfest e com roupas. Ou melhor, fantasias. Estar fantasiado é requisito quase obrigatório para festar, quem não tem pelo menos um chapéu engraçado ou um nariz de palhaço é o "anormal". Infelizmente, eu fiquei por lá apenas na metade do primeiro dia, pois, como um bom senhor de idade, aproveitei o feriadão de quatro dias para ir ver museu em Viena (cidade fantástica!). Mas deu para perceber que é caótico e divertido. E desafio qualquer um a ouvir o "hino" do carnaval algumas vezes e não ficar com esse treco grudado na cabeça!


Turismo colonial

Se minha passagem por Colônia tivesse sido nas minha viagens turísticas, quando tempo eu teria ficado por lá? Um dia, apenas (dois se fosse visitar o bom zoológico, claro). Seria perfeitamente possível chegar de manhã na estação central, visitar caminhando os principais pontos de interesse que ali se concentram, e ir embora no fim da tarde. Colônia possui, na verdade, uma das histórias mais longas e ricas da Alemanha. Desde que os romanos estabeleceram ali uma das suas fortalezas - logo transformada em cidade - na disputada fronteira germânica do Reno, Colônia é um dos principais centros da região. O problema é que os restos romanos foram quase totalmente apagados pelas etapas subsequentes. A enorme muralha medieval que cercava a cidade também foi desmantelada há tempos, ficando apenas uma coleção de grandiosos portões espalhados pelas praças. Mas o principal fator anti-turismo é o pesado bombardeio que a cidade sofreu durante a Segunda Guerra. A cidade foi devastada e, ao contrário de outras que sofreram com o mesmo destino, as construções antigas não foram reconstruídas fielmente. Para reerguer a potência econômica, foram levantados prédios sóbrios e sem muita graça. Assim, você não encontra um centro ou ruas históricas bem definidas, apenas alguns sortudos sobreviventes em meio à paisagem insossa.

Mas um desses sobreviventes por si só justifica uma visita, e atrai turistas como uma lâmpada para insetos: a catedral ("der Kölner Dom"). Basta você sair da estação central para ela lhe dar um soco nos olhos, logo ali do lado. A massiva fachada com duas torres é absurdamente massacrante (é a terceira igreja mais alta do mundo, atrás de uma construção moderna na Costa do Marfim e da catedral de Ulm, que só possui uma torre). Ao contrário de outras catedrais góticas limpinhas que já vi, o Dom possui um exterior "sujo" e escurecido, dando um aspecto um tanto quanto sinistro à Casa do Senhor. Mesmo tendo passado em frente à ela inúmeras vezes nesses quatro meses, era impossível não se impressionar.

Colado ao Dom, encontra-se o (pausa para respirar) o Römisch-Germanisches Museum, o museu de arqueologia da cidade. Não muito grande, mas interessante o bastante para gastar uma ou duas tardes. Ali foi descoberta uma casa romana com um grandioso e fantástico mosaico no chão, e a "solução" para não desmantelá-lo foi construir um museu ao seu redor (ah, se em todo lugar fosse assim...).

De resto, por ali, podem ser encontradas no centro outras igrejas interessantes, a antiga prefeitura, os restos subterrâneos da fortaleza romana ("Praetorium") e o próprio Reno. As paisagens da renomada rota romântica do Reno se localizam rio acima, entre Mainz e Koblenz. Ali em Colônia é só um grande rio margeado por cidade, mas mesmo assim tem um pôr do sol bonito. Nas estações mais quentes, gastar fins de tarde (ou noite) nos bares e restaurantes às suas margens deve ser ótimo (nas mais frias, é possível encontrar lugares fechados com uma boa vista).

Como parte do programa de lazer do CDC, fizemos também algumas visitas de finais de semana à cidades próximas de interesse turístico. Todas se tratavam de cidades não muito grandes, antigas e com centros históricos bem preservados. Mas, além disso, cada uma tem destaques adicionais. Aachen, na fronteira com a Bélgica, foi local do principal palácio construído por Carlos Magno, e consequentemente tem um museu que dá destaque aos francos e ao início do Sacro Império Romano. Maastrich é na Holanda e tivemos pouco tempo para ver, pois levou três horas para ir e para voltar, nada adequado para um bate e volta. Para quem gosta, possui dezenas de galerias de arte. Koblenz, por fim, é uma hora ao sul de Colônia, e é disparado a mais legal das três, seja pelas bonitas paisagens à beira dos rios ou monumentos históricos. Como destaque absoluto, o complexo do castelo, que fica no topo da colina, com diversos meandros e corredores em meio às muralhas e aposentos. Só em Heidelberg me lembro de ficar tão entretido explorando um castelo (mas também contribui para a experiência o fato de ser um dia chuvoso e o lugar estar quase deserto).


Da colônia para a cidade

E, exatamente mo primeiro de Abril, tudo se encerrou (de verdade!). Fim do curso de línguas em Colônia para começar o trabalho para valer em Darmstadt. Que também é uma cidade simpática e não tão pequena para os padrões alemães (150 mil habitantes, 430 mil na zona metropolitana). Aqui não será tão fácil entrar no bonde e em minutos estar em um museu, zoológico ou apresentação musical, mas Frankfurt está a meros 20 minutos de trem, e as redondezas estão plenas de cidades interessantes e paisagens bonitas (Mainz, Heidelberg, a rota romântica do Reno). De Colônia, sentirei falta dos amigos feitos lá e da vivacidade da cidade, a imensidão e diversidade de coisas para serem feitas a qualquer hora e lugar.


E até agora estava vivendo em um mundo paralelo, cercado por estrangeiros e pessoas acostumadas a conviver conosco, em uma cidade cosmopolita. Agora é hora de provar um pouco mais da Alemanha e dos alemães, embora também no mundo diferenciado da universidade. Mas é excelente ter de novo uma casa própria, e estou ansioso para começar o trabalho de verdade. Fim de "férias", hora de focar na ciência. E, espero, não esquecer que o artigo definido feminino no caso dativo muda para a mesma forma do artigo masculino no caso nominativo...

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

A Cidade Eterna


Roma foi um dos lugares que mais me marcou na minha primeira viagem, tanto pela cidade em si quanto por não ter conseguido aproveitá-la ao máximo. Ficou um gosto de quero mais, e era o único destino certo quando decidi passear pela Itália. Mas ela não podia estar mais diferente do que da última vez. Tendo na memória uma cidade escaldante, bagunçada e lotada de pessoas, o que encontrei foi uma temperatura agradável, uma certa organização (ressaca pós-Nápoles) e uma atmosfera sossegada. Ainda muitos turistas, claro (pencas de brasileiros, pra variar), mas nada de trânsito barulhento ou muitos vendedores folgados querendo se aproveitar. Fora dos pontos principais, dava até para chamá-la de "tranquila".

Dia 25 foi escolhido a dedo para a transição, pois é uma das datas (junto com 1 de janeiro) em que praticamente tudo fecha. Então, após chegar, não fiz mais nada além de ir para a pousada e jantar. Da outra vez eu tinha ficado próximo ao Vaticano, do outro lado da cidade, mas dessa vez achei um lugar próximo da estação central. Em dez minutos eu estava lá, uma guesthouse bem confortável com um dono atencioso e simpático. Como principal diferencial das outras que já fiquei, um "open-frigobar" e coisas para um café da manhã "faça-você-mesmo". Para a janta, o dono me indicou um restaurante logo na esquina, no qual acabei comendo quase todas as noites, pois era realmente bom.

Na sexta, acordei oito e meia e tomei um longo e tranquilo café. Não tinha pressa, pois tinha como plano principal apenas ir a Ostia Antica, na periferia de Roma (os sítios fecham praticamente todos às quatro e meia no inverno). Ir até lá é barato, pois usa o mesmo bilhete do metrô, mas demora um pouco. Entre caminhadas e trocas de trem, demorei uma hora para chegar lá, às onze e pouco. Teria comido menos se soubesse que visitaria um dos sítios mais legais que já vi.

Essa frase pode estar ficando batida, mas efetivamente o lugar me surpreendeu muito positivamente. Ostia Antica era nada menos que o porto principal da antiga cidade de Roma, na foz do rio Tibre. Após ser fundada como um forte na beira do rio, no século II a.C., para proteger contra ataques vindos do mar, cresceu até virar uma verdadeira cidade à parte, com suas docas, templos, prédios públicos, casas de ricos e estabelecimentos comerciais. Como tudo no Império, decaiu e foi esquecida após o século V d.C, constituindo hoje um sítio bem amplo, com muitos prédios mantendo uma estrutura relativamente conservada. Mas até aí nada de mais, não é? Já visitei uma penca de lugares assim. O que tem de diferente em Ostia Antica?

Uma coisa bem simples: liberdade (quase) total. Talvez pela quantidade de visitantes ser muito menor do que de outros lugares mais populares, em Ostia Antica a quantidade de lugares com acesso restrito é muito pequena. Uma hora ou outra você se depara com uma cordinha from Hell ou uma grade, principalmente em certas casas nos quais afrescos bem preservados ainda são encontrados. Mas, de resto, divirta-se. E como me diverti! Literalmente me sentindo uma criança com fichas infinitas no playground, pude ficar o dia todo pulando em meio às ruínas, por vezes subindo no segundo ou terceiro andar dos prédios antigos, ou até me enfiando naqueles que possuíam uma estrutura subterrânea (no que parecia ser apenas um buraco no chão, "descobri" um pequeno templo do Mitra romano, com estátua de culto e tudo). Para quem gosta desse tipo de coisa, de explorar por conta própria cada canto que interessar, e sem muitas pessoas por perto, é um lugar totalmente recomendável. Poucos são os que já me proporcionaram a mesma experiência (Delos, Capadócia).

Mas o sítio não é uma zoeira total, claro. Há um mapa de visitação e plenitude de placas explicativas, principalmente na região mais central (que também é a com mais restrições), então não é só questão de sair correndo pelos corredores. Dá para entender o que são os corredores (afinal, um pedaço de parede é muito mais legal quando era de um templo do que de uma latrina). Por ser um sítio grande onde as pessoas passam boa parte do dia, também conta com um bom restaurante, onde comi um canelone genial.

Fui o último a sair de lá, junto com mais uns gatos pingados, sob os apitos furiosos dos funcionários loucos para ir para casa. Apenas cinco horas foi pouco, pelo menos para gente doida por pedra velha como eu. O retorno foi ainda mais demorado que a ida, pois os trens não são tão frequentes, o que acabou com algumas possibilidades, mas o dia já tinha valido a pena.

No sábado, foi dia de "mais do mesmo": a região central da Roma antiga, com Coliseu, Fórum e Colina Palatina, que estavam a vinte minutos de caminhada da pousada. Mesmo eles não sendo prioridade na minha agenda, escolhi começar pelos sítios pois havia previsão de chuva para domingo e fim do sábado. Ali a minha sensação de cidade tranquila se esvaiu, pois estava tudo tão lotado quando da última vez. Parece que a Itália é um destino bem procurado nessa época entre Natal e Ano Novo, e logicamente ali é o ponto focal do turismo na capital. Já "vivido", evitei a fila de 100 metros  para comprar bilhetes no Coliseu, e fui para a de 10 metros do Fórum/Palatino.

Em três anos, a experiência de visitar as ruínas melhorou consideravelmente. Talvez tenha sido a maior experiência em visitar sítios, ou simplesmente não estar andando sob o sol do meio dia do verão, mas foi bem mais fácil entender a estrutura de um lugar que, mesmo na época antiga, já sofria com o atulhamento de construções. O mapa/guia de áudio anterior, que parecia ter prazer em confundir o visitante, foi substituído por um guia de vídeo (smartphone de novo! iei!) bem mais enxuto e simples de entender. Ele também só funcionava para o Fórum, não existindo guia atual para o Palatino. Seria uma perda muito grande, mas os romanos finalmente decidiram colocar bastante placas explicativas espalhadas pelo lugar, então a informação ainda está lá. Consegui ver (ou melhor, entender) muito mais coisa que antes, o que é normal em um sítio tão complexo (e foi exatamente o motivo pelo qual eu queria visitá-lo novamente). Pelos lados do Palatino, vi partes do ridiculamente grande palácio imperial que nem imaginava que existiam. E, por uma pequena facada a mais, também peguei uma visita guiada pelas recém-abertas casas de Otávio Augusto e Lívia, talvez os personagens mais importantes do início da era imperial, pós-Júlio César.

Faltando pouco para as 15:30, saí correndo para atravessar a praça e pegar os últimos minutos de admissão no Coliseu, usando o ingresso do Fórum para pular a fila. Infelizmente, devido à falta de informação na Internet e algumas dúbias dadas nos próprios sítios, de novo não consegui fazer a visita guiada ao anel superior e subsolo. De qualquer forma, uma das informações é de que os ingressos estavam todos esgotados até janeiro (quem quiser, tem que se planejar mesmo). Então uma hora acabou sendo mais do que suficiente, pois, embora o pouco que tenha seja espetacular, não tem muita coisa para ver no Coliseu, e gastei a maior parte em uma mostra temporária sobre escrita na Antiguidade Clássica.

Bem no final da visita ao Coliseu, a chuva começou a cair. Não tinha almoçado ainda, pois não existe comida dentro daqueles sítios (tática para aumentar a rotatividade?), e tinha passado só com os poucos doces que tinha saqueado da pousada. Então encerrei por ali mesmo, cedo, caminhando rápido sob vento e pingos até a pousada, apenas parando para um almojanta num restaurante próximo.

Domingo meus planos deram certo: o tempo estava ruim! Então foi dia de museu. De manhã, visitei dois rapidamente, ambos logo em frente à estação central e, assim, a uma curta caminhada da pousada. Podia ter ido em algum no dia anterior, mas não sabia que ficavam abertos até 19:30 (os horários limitados no inverno são só para os sítios arqueológicos).

Um foi a monumental Terma de Diocleciano, o maior complexo desse tipo construído na capital. Considerando que termas eram possivelmente o tipo de prédio público mais essencial para os romanos, dá para perceber que não é pouca coisa. Não sobrou muito, e algumas partes foram incorporadas a uma igreja, mas ainda existem salões enormes e paredões de impor respeito. As termas foram a primeira sede do Museu Nacional Romano, assim ainda exibem uma razoável coleção de estátuas e artefatos.

No quesito estátuas, melhor é o setor vizinho do Museu, que fica no Palazzio Massimo, do outro lado da praça. O diferencial dele é que, além de peças muito bonitas, há bastante textos explicativos. Também tem uma coleção de moedas italianas imensa, indo dos primeiros moedões de bronze do século VII a.C. até as recentes, sempre acompanhadas de explicações de como imperadores, papas e reis brincaram com a valorização das moedas, para tentar superar momentos de crise econômica.

Meu tempo ali teve que ser menor do que o desejado, pois a bateria da câmera ameaçou acabar (lição aprendida: jamais deixe de carregá-la de noite, mesmo achando que ainda tem bastante). Então corri para o hotel, almoçar coisas do café da manhã enquanto a câmera carregava. Depois, economizei alguns minutos, passos e pingos de chuva com o metrô e fui para o filé dos museus de Roma (afinal, os do Vaticano estão em outro país, não é?): os Museus Capitolinos, bem ao lado do sítio do Fórum, ocupando a colina onde outrora repousavam alguns dos prédios mais importantes para os romanos.

Os dois museus ocupam a praça no topo da colina, que é completada por um prédio do governo, e possui no centro uma réplica de uma bela estátua equestre em bronze do imperador Marco Aurélio. São principalmente museus de arte, com pouco de arqueologia. Até é possível encontrar algumas informações históricas, mas a maior parte é sobre as peças em si. Como o primeiro museu público do Ocidente moderno (fundado no século XV), a coleção não decepciona: muitas das peças romanas mais legais e famosas estão lá, como a simpática lobinha com cara de assustada alimentando Rômulo e Remo - que na verdade é uma provável obra medieval inspirada por uma da Antiguidade). Achei legal que a maior parte das estátuas da coleção é mitológica, pois nos outros museus é até difícil encontrá-las no meio de todos aqueles retratos de imperadores, familiares e ricos narcisistas.

Em uma ala recém-construída para abrigar o original da estátua que adorna a praça, pode-se ver alguns restos colossais das fundações daquele que era o mais importante templo de Roma, o de Júpiter. Infelizmente, ao contrário de seus vizinhos do Fórum, nem algumas colunas de pé sobraram para contar a história. Então só dá para ver algumas pedras, as maquetes e imaginar quão espetacular ele era.

O corredor que liga os dois prédios também possui resquícios arqueológicos interessantes. Pegando um corredor lateral, mais restos de um templo dedicado a um deus obscuro, incluindo a grande e descabeçada estátua de culto. Ali você chega ao que sobrou do "Tabularium", uma grandiosa estrutura nos fundos do Fórum, que guardava os registros oficiais dos romanos. Sobrou só um grande corredor de frente para as ruínas, de onde é possível ter uma ótima vista destas (principalmente de noite, já que o sítio em si já está fechado).

Dentre andanças por cantos escondidos, leitura e repetidas tentativas de tirar fotos boas sem flash, fiquei nos museus das três até pouco antes de fechar, às oito. E isso que só passei muito batido pela ala de pinturas. Foi um fechamento digno para mais uma estadia em Roma (e, incidentalmente, os únicos museus realmente foda que vi nessa viagem). Só restou comer um último bom jantar, arrumar as malas e me preparar para a próxima parada.

Depois dessas duas visitas, posso reforçar aquela primeira impressão de três anos e meio atrás e dizer com segurança: Roma é a cidade que mais gostei em todas as minhas viagens. Também, pudera: não acho que exista cidade no Ocidente ou Oriente próximo que tenha sido tão importante por tanto tempo (se somar o tempo de república/império e o de núcleo da Igreja Católica), assim como não há civilização antiga que tenha tido tanta influência histórica como a romana (embora eu pessoalmente goste mais dos gregos). Há tanta coisa para ser vista em Roma, inclusive que valem duas ou três visitas, que um viajante pode passar lá por várias vezes sem medo de tédio. Que a Cidade Eterna continue assim, pois eu certamente quero voltar um dia.

sábado, 27 de dezembro de 2014

Transições

Após mal ter me estabelecido em Colônia, não posso dizer que eu estava particularmente sedento por uma viagem. Mas fomos informados no curso de alemão que, nas duas semanas que incluíam o Natal e Ano Novo, ia ter apenas cinco dias "úteis", com aulas especiais para as pobres almas que permanecessem ali. Quem quisesse, poderia ter uma folga, apenas tendo que levar uns deveres a mais embaixo do braço. Não iria ser a qualquer momento que eu teria duas semanas de graça tão cedo. E também seria interessante ocupar a cabeça com os prazeres de uma viagem, evitando a melancolia de passar a melhor época do ano longe das pessoas próximas. Olhei para a janela, vendo o onipresente céu nublado e o vento gelado balançando as árvores, e concluí que seria uma boa dar uma escapada dali.

Com isso decidido, a Itália foi uma escolha fácil. Grécia (sempre) e Península Ibérica chegaram a passar pela minha cabeça, mas descartei logo a primeiro porque, apesar do inverno no Mediterrâneo ser dez graus mais quente do que em Colônia, ainda não é exatamente um clima de praia. E Espanha/Portugal perderam no quesito interesse pessoal, pois desde a minha primeira viagem, quando passei por Roma, fiquei com vontade de voltar lá e também dar uma pernada mais comprida pelo país.

Sem muita cabeça para pensar a fundo naquele momento, e com apenas dez dias antes do início, revirei a internet em busca de passagens a um preço ainda razoável (pois também não é uma época muito barata para viajar por aqui). Comprei a de ida direto para o sul, em Nápoles, e a volta do norte, em Milão, deixando para decidir o recheio depois. Esse só foi definido alguns dias antes, para poder reservar hotéis, e novamente no plano de "menos cidades por mais tempo, fazendo bate-e-volta nas vizinhanças": três dias em Nápoles, três em Roma, um em Florença, quatro em Milão, fora os dias dedicados a translados. Busquei um pouco de informações sobre os lugares e coisas para fazer, mas a maior parte ficou na base do "chegando lá a gente vê".

Domingo de manhã peguei um táxi para o aeroporto (simplesmente não tem transporte público nesse dia a partir de onde moro), ainda embrulhado em casacos e cachecóis, e louco para poder andar um pouco mais leve, pelo menos por alguns dias vindouros.


Nápoles

Incrível como uma viagem de apenas duas horas de avião pode nos levar a um mundo completamente distinto. Saí de uma Alemanha fria, chuvosa, nublada e estritamente organizada, para uma Nápoles fresca, ensolarada e séria candidata ao título de "cidade mais zoada do planeta".

Ao chegar no único aeroporto de uma das maiores regiões metropolitanas da Europa, ao meio dia, o único transporte para a cidade além do táxi era um ônibus para o qual se compra o passe em uma tabacaria nos fundos do lugar. Logicamente, ele atrasou bastante, mas nem me importei: o céu estava claro e o sol conseguia esquentar. Sentir microgramas de vitamina D correndo pelo meu corpo já me deixou animado.

Depois de muito engarrafamento, o ônibus parou na Praça Garibaldi, o núcleo dos transportes públicos, de onde partem as duas linhas de metrô e os trams (nesse caso, ônibus alimentados por cabos elétricos que andam apenas em caminhos pré-definidos, mas compartilhados com outros veículos - basicamente, um trem de superfície que pega trânsito). e onde fica também a estação central de trens, de onde partem trens urbanos e interurbanos. Felizmente minha pousada era a 10 minutos de caminhada dali (teoricamente, quando você se perde pelas ruas o tempo dobra), em uma das vias centrais do centro histórico, ao lado da Catedral. Ao chegar lá, fui bem recebido pelo dono e logo saí para buscar comida e caminhar pelas ruas.

A palavra mais adequada para definir Nápoles é: CAOS. O som de buzinas estressadas é onipresente, todo dia, o dia todo (até domingo), enquanto carros e motos correm por ruas que não tem faixas, mão ou lei. Até tem umas tintas no chão e placas coloridas, mas elas provavelmente fazem apenas parte da decoração de Natal. As faixas de pedestres mal são visíveis, mas não que isso fizesse alguma diferença. E isso vale para os dois lados: pedestres se jogam pelas ruas em qualquer lugar, pois é o único jeito de atravessá-las, driblando motos enlouquecidas que não diminuem a velocidade (em um momento, uma moto buzinou para apressar uma mulher que atravessava... na faixa de pedestres e empurrando um carrinho de bebê!). Justiça seja feita, os veículos não andam muito rápido, mas é por pura e simples questão de sobrevivência.

Nápoles possui o maior centro histórico da Europa, em termos de área. Caminhar por ele, entretanto, é uma tarefa ingrata. Se você quer ter uma impressão realista de como era caminhar por uma cidade grande na Idade Média/Renascimento, sem idealizações, lá é o lugar certo. O troço é um labirinto de ruas muito estreitas. Mesmo as vias que aparecem como principais no Google tem pouco mais do que a largura necessária para dois carros se cruzarem. Some a isso o fato de que carros, motos, pedestres e vendedores dividem o espaço (ou melhor, brigam por ele) e você pode imaginar a confusão. Em alguns lugares, uma "calçada" é demarcada em um lado por postes metálicos, o que só faz diferença para os carros. Mesmo em ruas só para pedestres o pouco espaço cria engarrafamentos de pessoas, tanto que foram criadas até algumas de sentido único (um brinde para quem acertar se esse sentido é respeitado).

Os prédios são altos, com andares e andares de janelas cheias de roupas penduradas. O sol chega no chão apenas em alguns poucos momentos, por exemplo quando pequenas praças se abrem na frente das igrejas. E haja igreja por lá! A cidade também conta com a maior concentração de igrejas por metro quadrado do mundo, em seu centro histórico. É uma atrás da outra, mas a maioria das que eu vi estava fechada por algum motivo (ou motivo algum). A catedral gótica é certamente a mais bonita, embora só por dentro seja possível perceber suas dimensões, já que não há espaço na rua para enxergar direito. A fachada é bem mais simples que as catedrais góticas da Europa central e nortenha, mas por dentro nada se compara às igrejas da Itália. A riqueza de cores, afrescos, mosaicos, mármores e metais decorativos deixa muito para trás as sóbrias colegas setentrionais.

Caminhei pelo centro durante um par de horas e foi Nápoles o bastante para mim. Foi legal, pois a bagunça é tanta e tão caricata que chega a ser divertida (e os italianos se encaixam muito bem no seu estereótipo de efusivos, faladores e barulhentos). Mas foi o bastante para eu tirar o "dia de sightseeing" (aquele de ficar caminhando por aí vendo várias coisas) do roteiro, e buscar locais mais aprazíveis para gastar o tempo. O pouco do que vi fora do centro histórico também não me impressionou muito: ruas maiores, mas o mesmo trânsito, e prédios deploráveis sem o charme bizarro dos do centro (a pessoa que chamou a Itália de "favela da Europa" certamente estava pensando em Nápoles).

Segunda fui direto ao filé mignon do que a região tem a oferecer, um dos pontos turísticos mais famosos do mundo: Pompéia. Peguei o trem que leva ao sítio, a apenas meia hora da estação central, pensando em ficar lá a maior parte do dia e possivelmente conhecer algum dos outros pontos de interesse próximo. Doce ilusão: cheguei às 9:30 e fiquei por lá até a hora do fechamento, cinco da tarde, mal parando para descansar as pernas no meio tempo.

Pompéia era uma cidade de alguma importância no sul da Itália, na época romana, mas não muito relevante no grande esquema das coisas. Seu destino na História foi sacramentado no ano 79, com a violenta erupção do Vesúvio, a menos de 10 km de distância. A lava não passou por ali, mas houve desastres o bastante: o tremor de terra derrubou paredes, a explosão de gás quente varreu telhados e matou os seres vivos, e por fim vários metros de fina cinza vulcânica cobriram os destroços, preservando o que sobrou pelos próximos dezessete séculos, antes do redescobrimento e escavações.

Embora as ruínas dali não tenham a mesma importância histórica das de uma Roma ou Atenas, o que torna a coisa interessante é que elas eram exatamente daquele modo há dois mil anos atrás. Não houveram modificações posteriores, ruas cobertas por asfalto, templos transformados em igrejas cristãs, casas que viraram botecos. Se aquilo parece um boteco, é porque era realmente um boteco romano (e existiam vários em Pompéia). A organização da cidade fica bem evidente, com ruas retas dividindo blocos de prédios públicos ou privados. Pela primeira vez consegui entender com detalhes a estrutura de uma casa tipicamente romana, e várias delas ainda estão com interiores parcialmente conservados, apresentando afrescos e mosaicos (os mais importantes foram removidos para o Museu Arqueológico de Nápoles, mas muitos ainda ficaram por lá).

Uma das coisas mais marcantes desses sítios é que, no meio da rocha formada pela cinza vulcânica, foram encontrados vários espaços demarcando os corpos das pessoas e animais que morreram na erupção. As partes mais frágeis se decompuseram, deixando para trás ossos e espaços vazios, que durante as escavações foram preenchidos com argamassa. Assim, é possível ter moldes da exata posição das pessoas ao morrerem. A maioria desses moldes está também no museu, mas alguns podem ser apreciados in situ.

O sítio é enorme e dá para gastar fácil o dia todo explorando seus meandros. Um restaurante ali dentro garante a sobrevivência dos dedicados exploradores. O guia de áudio toma um certo tempo, mas é peça essencial da visita, pois quase não existem cartazes explicativos. Gastar tempo tentando entender o mapa e para não se perder também é vital. Fico pensando em como seria nos anos 60, quando a área acessível era três vezes maior do que hoje (mas ainda bem que existem as restrições, senão as coisas estariam bem capengas). Como ponto negativo, quase metade das antigas casas que constam no mapa de visitação estavam fechadas, seja para restauração (motivo válido) ou por razões inexplicadas. Já que cada casa tinha alguém vigiando por dentro, pode ser que seja por falta de pessoal. Visitar esses lugares na época dos feriados de fim de ano pode ter esse efeito, além dos sítios fecharem mais cedo (na parte mais quente do ano, vai até 19:30). A grande vantagem é a menor quantidade de pessoas. Na hora final, eu quase me sentia andando sozinho pelas ruas milenares.

O dia então acabou sendo "só" Pompéia. Peguei um McDonalds na estação e me dei por feliz, pensando no que fazer nos próximos dias. A previsão era de sol na terça e nuvens na quarta. Assim, decidi ir para a praia, e no outro dia cedo embarquei em mais um trem para o sul, rumo a Paestum.

Ok, não era exatamente praia que eu buscava, mas Paestum é efetivamente uma cidadezinha litorânea, uma hora ao sul de Nápoles, que no verão vira um agitado destino praiano. No inverno, não passa de uma tranquila redondeza campesina, com nada além de poucas casas espalhadas entre hotéis-fazenda e fazendas-não-hotel.

Isto é, sem contar o sítio arqueológico com três dos mais bem preservados templos gregos do mundo.

Antes de Roma começar a estender suas garrinhas pela península apenina, o sul da Itália era pontilhado de cidades gregas, que foram fundadas a partir dos anos 600-500 a.C. (a região toda, incluindo a Sicília, era conhecida como "Magna Grecia"). Poseidonia era uma dessas, tendo recebido o nome bem menos legal de Paestum após conquista por parte de povos itálicos. Possui uma bem conservada muralha, que demarca uma área muitas vezes maior do que aquela escavada, mas que permanece oculta por pertencer a proprietários particulares.

Da pequena estação de trem, passei por um dos portões da muralha e caminhei dez minutos até chegar no sítio. Ao redor dele, uma dúzia de restaurantes e lojas de souvernirs, uma igreja cristã bem antiga (e bem sem graça) e o museu que guarda os achados. Comprei o ingresso e peguei junto o guia de áudio e vídeo, que nada mais era que um Samsumg Galaxy, se tornando a primeira vez na vida em que um smartphone ficou mais do que alguns minutos na minha mão (e bastaram esses primeiros minutos para eu arranhar a tela, mas ainda bem que ninguém reclamou...).

Embora a cidade tenha passado mais tempo na mão dos italianos, o sítio é bem mais grego do que romano. Na minha classificação arqueológica pessoal, muito científica e complexa, isso significa que é muito mais baseado em fundações e colunas de pedra do que paredes de tijolos. Mas as estrelas dali não são as casinhas de nobres afetados, e sim os três templos dóricos que se mantém de pé. O primeiro com o qual me deparei foi o de Atenas, que já impressiona. Conforme fui caminhando pelo sítio, fui me aproximando dos outros dois, que ficam lado a lado, na outra extremidade. O primeiro deles fez meu queixo cair, pois, além de ser o mais bem conservado, é simplesmente ENORME. Só pesquisando depois na net para acreditar que é menor que o contemporâneo Partenon, pois na hora me pareceu o maior templo que eu já tinha visto. O que fica do lado é o mais velho, construído em 550 a.C., um século antes do outro, mas sua antiguidade fica apagada diante da força bruta do irmão maior.

Chegando perto da uma, e com o céu azul e ensolarado, fiquei satisfeito de ruínas e apenas um pensamento passou a preencher minha cabeça e estômago: ir para a praia comer frutos do mar. Depois de vinte minutos de caminhada rápida, dando a volta no sítio e fugindo de uns cachorros estressados, cheguei lá. Talvez os templos tenham me confundido e eu tenha achado que estava mesmo na Grécia (e no verão!), e que veria uma fileira de casinhas brancas e restaurantes servindo todo tipo de iguaria do mar. A verdade é que, além de ser inverno, o caminho mais próximo do sítio leva a uma parte quase deserta da praia, com um pequeno aglomerado de estabelecimentos fechados. Nenhum ser vivo à vista além de gaivotas. Apenas um restaurante silencioso com uma placa de "aberto" na porta. Entrei nele e fui atendido por um garçom surpreso. Mas deu para sentar do lado de fora, vendo a praia a uma certa distância, e pedir um prato superfaturado de lulas e camarões. Deveriam ter me dado desconto, pois no fim servi de chamariz para mais um casal e um turista solitário pararem por ali. De qualquer modo, a comida estava boa, e deu para dar uma olhada na enorme praia de areia com céu azul, então quase valeu a caminhada de ida e volta.

De volta ao sítio, gastei as últimas horas no museu que guarda os achados dali, até quase a hora dele fechar (18:30), junto com tudo o que tinha por perto. Só restou voltar a Roma. Novamente tinha sido um dia excelente e eu estava satisfeito, mas, como na noite seguinte seria véspera de Natal e eu provavelmente teria que depender de McDonald's, ainda fui em uma pizzaria próxima da pousada. Nápoles clama ser a terra que inventou a pizza (não sei se é verdade), então pizzaria é o que não falta por lá. Mas não pediria uma pizza de presunto com queijo só por ser uma Napolitana legítima, então fui de uma com cobertura mais elaborada.

Sobraram mil planos para o último dia: visitar Herculano, subir o Vesúvio, conhecer o Museu de Arqueologia. O sol resolveu ir embora, trocado por um céu digno de Alemanha, e temperaturas um pouco mais baixas (mas ainda acima dos 10 graus). Depois de passar um dia inteiro em Pompéia, nem fazia tanta questão de visitar o segundo sítio mais importante gerado pela erupção do Vesúvio, mas ele fica a apenas 15 minutos de Nápoles, e no mesmo ponto em que sobem ônibus para o Vesúvio. Então lá fui eu.

No fim valeu bastante a visita também, pois é um sítio com qualidades distintas de Pompéia. É muito menor, ocupando uma cratera enorme cavada no meio da cidade, mas sem se estender a perder de vista. Porém, os prédios estão em melhor estado, e muitos mantém o teto ou o segundo andar. Novamente, muitas das casas mais conservadas estavam fechadas, efeito do impacto da visitação e da pobreza/preguiça do pessoal em investir (muito mais fácil fechar um local para visitação do que tornar essa atividade sustentável, não é?). Fiquei duas horas e meia ali, extraindo tudo o que podia do guia de áudio (novamente imprescindível), então dá para ver que não é um sítio dos maiores.

Na volta, passei na empresa que faz os tours de ônibus para o Vesúvio, ao lado da estação de trem. Perguntei quando teria uma saída para lá. O atendente fez uma cara de "sei lá", falou que tinha que esperar meia hora... Já versado no Conto do Italiano, e considerando o clima meia boca, desencanei do passeio e rumei direto à Nápoles e ao museu. O vulcão mais perigoso do mundo fica para o futuro (se não explodir até lá).

O Museu de Arqueologia de Nápoles tem a fama de ser um dos mais importantes da Itália, e talvez do mundo. A explicação é simples: o grosso dos achados dos sítios vesuvianos estão ali. Além disso, guarda a coleção Farnese, de uma família italiana que há séculos buscava e adquiria esculturas romanas clássicas. Porém, eu havia lido coisas terríveis sobre o estado atual do museu, sobre falta de informação, bagunça, coleções fechadas. Na verdade isso que me fez deslocar para a tarde do último dia algo que normalmente eu reservaria um dia inteiro. A  página deles na Internet não melhorava a impressão, pois era um amontoado de informações dúbias. Cada dia da semana algumas coleções eram abertas de manhã, outras de tarde, e havia visitas guiadas para determinadas coleções de tarde. Além disso, era dia 24, e eu duvidava até do horário de abertura informado (19:30 todos os dias). Então peguei o metrô para lá com um pé atrás.

A primeira impressão foi realmente negativa. Havia uma visita guiada anunciada no painel, mas a guria que vendia os ingressos não sabia de nada, e me mandou falar com o balcão de informações (que estava a dois metros dali). No balcão, a outra mulher teve que ligar para duas pessoas só para descobrir que não, a visita anunciada no site e no painel ao lado dela não aconteceria, porque era dia 24. Ainda bem que eu já estava preparado psicologicamente, então comprei o ingresso e entrei.

A má impressão foi se desfazendo ao passar pelo andar térreo. As críticas todas tinham me passado a imagem de um lugar decadente, caindo aos pedaços, com peças empoeiradas e enferrujadas. Mas o museu possui espaços bem amplos e as peças estão bem dispostas. A coleção Farnese estava aberta (mas com algumas salas fechadas), e conta realmente com algumas peças bem famosas. Ponto interessante para quem ficar impressionado pela "escultura romana": 90% das peças serão descritas como "reprodução romana do século [I-III] d.C. de um original grego do século [V-III] a.C.". Sim, o que os romanos mais faziam eram cópias (muitas vezes em larga escala) de famosas estátuas da Grécia Clássica. Certamente eles incorporavam avanços técnicos e novos detalhes nessas obras, e graças a elas que conhecemos muitas das obras gregas, perdidas no tempo. Mas é uma das coisas que me faz olhar para Roma como um poder essencialmente político e militar. Em matéria de cultura, o que eles geralmente faziam eram assimilar, reformular e disseminar a cultura dos povos conquistados.

Subindo as escadas para o segundo nível, de um lado tinha a coleção numismática e epigráfica, fechada. Do outro, felizmente aberta, a de mosaicos das casas de Pompéia e Herculano. É uma das partes mais legais, pois os mosaicos estão muito bem conservados e apresentam cenas diversas, sejam mitológicas, retratos, animais ou coisas bem prosaicas (até um boneco de palitinho tinha). Dentre eles, talvez o mais famoso dos mosaicos, o que mostra Alexandre, o Grande, combatendo o rei persa Dario. Já tinha visto uma cópia dele no lugar onde foi encontrado, em Pompéia, mas ali estava o glorioso original.

Nos fundos da ala dos mosaicos, se localiza outro dos setores mais importantes do museu. Conforme as escavações vesuvianas eram executadas, os puritanos arqueólogos dos séculos XVIII-XIX eram embaraçosamente confrontados por toda a safadeza que fazia parte da vida dos romanos. Mosaicos e afrescos mostrando casais em posições atléticas e estátuas de deuses inspiradas pelo Kid Bengala surgiam por todos os lados. Para resguardar a moral e os bons costumes, esses achados foram colocado em uma sala com acesso restrito, que depois ficou completamente fechada. Após muito tempo, a "Sala Secreta" foi redescoberta e aberta ao público...

... ou ao menos assim deveria ser, pois era outros setor fechado. Só dava para ver uns vislumbres de fora, quase como espiar a vizinha pela janela do banheiro.


Sem sacanagem na minha vida, subi para o muito aguardado último nível, que concentrava a grande maioria dos achados vesuvianos. Estátuas, utensílios, afrescos, moldes de corpos... depois de dois dias ouvindo o guia de áudio falar o tempo todo "a coisa X foi achada aqui e agora está em exposição no Museu Arqueológico de Nápoles", tudo o que eu queria era ver a coisa X, a Y e a Z.


No segundo andar, um salão central imenso e vazio. Todas as salas laterais fechadas.

Daí fiquei muito puto. Como é que um museu que empossa para si artefatos únicos, peças de importância mundial, e recebe milhares de visitantes (atraídos só pela fama, certamente) consegue ser tão tosco? Pois, se botar no papel, mais do que dois terços dele se encontravam fechados. As justificativas deles são "falta de pessoal", mas não era difícil cruzar com dois funcionários batendo papo em um canto. E o ingresso também não é dos mais baratos. A história do "mais é dia 24!" também não cola, pois essas eram exatamente as reclamações de outros visitantes que tinha lido. Fiquei com vontade de ir lá bater a cabeça da guria da bilheteria contra a da informação até as duas berrarem que me levariam por uma visita guiada até pela sala da faxineira do museu. Mas me conformei, pois já estava preparado para isso, e apenas gastei mais tempo tentando tirar fotos melhores e brincando com as opções da minha câmera nova.

Na noite, Natal via Skype. Felizmente meu computador, que anda cambaleando, colaborou e deu para quase me sentir em casa, tomando umas cervejas e vendo a galera trocas os presentes. Como o dia 25 seria apenas para viajar (afinal, tudo fecha nesse dia), não precisei acordar cedo. Pegar o trem foi tranquilo, fora o atraso de 45 minutos ("normal", segundo os italianos). E foi a vez de mais uma transição, para uma Roma mais fria e que, depois da cidade anterior, até parecia tranquila e organizada. Mas isso é história para outro dia.

Nápoles pode não ser a coisa mais linda do universo, mas tem por perto muitas coisas legais. Valeu ter ido lá, e posso até voltar em um dia de sol, para ver o Vesúvio, e quando a direção do Museu Arqueológico decidir trabalhar direito (ou for trocada por uma coligação Britânico-Alemã). Mas recomendo que os visitantes fiquem relativamente próximos da estação central, pois vão sair muito da cidade. E certamente não irão querer pegar um ônibus ou táxi para chegar lá...

sábado, 20 de dezembro de 2014

Die ersten Schritte in ein neues Neuesleben

(ok, isso provavelmente não está escrito corretamente, mas é apenas uma referência a uma outra mudança, há muito tempo atrás)

Ao contrário de jogar Hellfire no Mega Drive, não é todo dia que se dá um reset na vida inteira. Que se deixa para trás tudo aquilo que faz parte da sua rotina, todo conforto e perrengue do dia a dia, e se embarca em um mundo completamente novo, onde todas as pessoas são novas, cada dia surge uma novidade, e mesmo coisas aparentemente eternas como colocar requeijão no Miojo se tornam coisa do passado. É o que fiz há três semanas, ao trocar o verão brasileiro pelo inverno alemão, onde ficarei durante algumas voltas ao redor do Sol (só que sem sol).

Ok, logicamente estou sendo dramático (mas qual escritor não é?). Mudar-se para meio mundo de distância é bem diferente quando você sabe que é algo temporário e tem uma vida (e um emprego!) te esperando na volta. Se as coisas estiverem complicadas, é só respirar fundo, focar no objetivo que te levou ali e pensar que uma hora acaba. Se for difícil se aproximar de novas pessoas, é só manter as antigas perto do coração (e da voz e imagem - viva a tecnologia!). Não é também como se a Alemanha fosse uma sociedade completamente diferente e eu já estivesse tendo convulsões por abstinência de Coca Cola. Ainda estou no mundo ocidental, e a globalização já fez sua parte para que ninguém se sinta tão estranho ao mudar de hemisfério. Mas também não tenham dúvida: quatro anos é um tempo longo, e as coisas aqui são diferentes. Já ter passeado pelas redondezas ajuda, mas o mundo asséptico do turismo não é a vida real. O negócio é esquecer os receios e cair de cabeça.

Alguns me perguntaram: por que a Alemanha? Para o sisudo comitê de seleção do Doutorado, é claro que a resposta foi "pois o orientador é muito bom, o grupo de trabalho faz exatamente aquilo que eu quero fazer, e o país fornece ótimas condições materiais e intelectuais para o estudo". Tudo isso é a mais pura verdade, logicamente. Eu não daria um migué tão grande só para me jogar para outro país. Gastar muito tempo de vida apenas para cumprir tabela no trabalho e esperar o relógio tocar para curtir o tempo livre não estava me deixando muito feliz nem no Brasil, quanto mais aqui. Porém, muitos outros lugares do mundo ofereceriam esses benefícios profissionais.

A escolha pela Alemanha é, sem dúvida, por interesse pessoal (foi mal, DAAD!). Já há vários anos, muito antes de fazer minhas primeiras viagens turísticas, eu passei a me reconectar com as raízes culturais da minha família e da cidade onde nasci. Quando criança/adolescente/neoadulto, eu não valorizava isso muito mais do que na hora de ir para uma Oktoberfest meia boca tomar chope da Kaiser. A língua alemã era só um troço de sonoridade muito engraçada que as tiazonas e velhinhos cuspiam nas festas. Mas, do mesmo modo que a Oktoberfest botou para fora o axé e o sertanejo para reencontrar sua veia teutônica (com direito a Eisenbahn!), meu interesse geral por história e por coisas do passado me fez querer conhecer melhor, e sentir mais de perto, a minha origem pós-Adão e Eva. Do mesmo modo, o olhar crítico com o qual eu olhava os conhecidos que desprezavam o Brasil e queriam se achar amigos de Facebook do Otto Von Bismarck me fazia pensar: se não somos alemães (não somos de modo algum, só acha isso o blumenauense tradicionalista que nunca meteu o nariz para além de Pomerode), mas também não somos exatamente brasileiros típicos (afinal, estamos aqui há bem menos tempo do que portugueses e espanhóis)... quem somos? Até onde aquilo que somos hoje tem a ver com o que fomos, e quais as diferenças que 160 anos de evolução cultural dos dois lados levaram? Isso é algo que não se sente de verdade em um passeio apressado por pontos turísticos. Só morando mesmo por algum tempo para saber.

E tem as cervejas e os shows de metal, óbvio. Mas isso é apenas um pequeno bônus a mais (mentiiira!).


Tropeço, salto e dança

As últimas semanas no Brasil foram emocionalmente muito intensas. O último suspiro real de tranquilidade e relaxamento foi quando passei dez dias de férias em Blumenau durante outubro, longe o bastante da partida para não ser tão afetado por ansiedades e aflições. Após isso, muita coisa prática para resolver, e também uma grande sequência de despedidas. Conforme novembro minguava, a tensão aumentava. Encaixotar bagulhos e dormir em uma casa vazia. Dar um último abraço em quem você não sabe se ainda verá vivo. Ir para um jantar sabendo que será o último. Do mesmo modo, como bom neurótico, cresciam as dúvidas: como vou me virar lá? Como será morar numa casa nova que eu não escolhi? Será que dou conta? No final, ao mesmo tempo em que eu queria aproveitar ao máximo os minutos, estava também louco para embarcar de vez e tirar o peso da ansiedade dos ombros.

Assim, foi com um sorriso no rosto e uma certa sensação de liberdade que adentrei o portão de embarque, no sábado de manhã. O sorriso começou a morrer ao embarcar no avião intercontinental. Graças ao atraso no processo seletivo, não pude comprar a passagem com muita antecedência, e caí em uma empresa de baixo custo (Air Europa, não recomendo). Bancos apertados, nada de telinhas particulares para ver um filme. Além de nunca conseguir dormir em avião, a coxinha do café da manhã começou a sussurrar para minhas tripas que seria uma longa viagem. É, foi uma viagem de merda, em todos os sentidos.

Durante a conexão, em Madri, veio a temida imigração. Um brasileiro à minha frente conversava com uma menina sobre o seu doutorado sanduíche. Ao ser atendido, já foi mostrando seus documentos e permissões, para evitar problemas. Eu usei a super estratégia de todas as minhas viagens: disse "oi" e entreguei o passaporte. Alguns segundos e uma carimbada depois, segui adiante. Olhei para trás e lá estava o coitado, ainda mostrando folhas e tropeçando no inglês. "Noob", pensou uma pequena e maldosa parte do meu ser (ele passou no fim, não se preocupem).

Ao chegar em Frankfurt, esperei pela chegada da minha mala (completamente destruída), peguei o sobretudo, luvas e touca, e fui direto pegar o trem para Colônia. Na plataforma de embarque, o primeiro contato com o simpático céu cinzento, vento e chuvisco, e a primeira certeza: não tiro a barba de modo algum antes do verão. Aqui não é questão de estética, é de sobrevivência.

Chegando na estação, tudo o que eu não queria era arrastar minha mala quebrada pelo transporte público num domingo para chegar na PQP onde iria morar, então fiz um taxista feliz. Chegando lá, conheci a mulher que me hospedaria, junto com mais meio mundo, e sua casa enorme cheia de quartos e meandros. Chegando junto comigo, duas indonésias, e, já morando ali há alguns meses, um brasileiro e uma facção inteira da Yakuza. Em estado semi-zumbi e com a barriga ainda borbulhando, foi uma tarefa árdua socializar e sorrir durante o café de boas vindas oferecido por ela (muito simpática e receptiva, por sinal). Ela me mostrou o meu quarto, pequeno mas satisfatório para um período de alguns meses. Tomei banho sob um fio de água quente em um banheiro frio. Ao deitar na cama às quatro e meia da tarde, com o céu já escuro, portas batendo, pessoas andando pelo corredor, tive meu momento "o que fiz com minha vida?". Mas as 30 horas acordados chutaram a mente rebelde para longe e logo apaguei.

Entre algumas acordadas, dormi razoavelmente bem, estando funcional às sete e meia da manhã, hora de ir para o Carl Duisberg Center, o lugar onde faço o curso de alemão. Foi a primeira de várias longas viagens de uma hora ou mais, dentre ônibus, trens e trechos de caminhada no escuro (começa a amanhecer só depois das oito).

Se até o momento a história parece um desastre,não se preocupem: agora ela fica mais feliz, pois a vida logo entrou nos eixos. O curso de alemão começou bem: apesar de ser uma língua muito difícil e sem lógica, aprendê-la está sendo muito interessante (mais sobre isso no futuro). Minha turma de losers (isso é, pessoas sem conhecimento prévio de alemão) tinha apenas mais três pessoas, sendo que uma já não está mais, o que torna o aprendizado mais dinâmico. A carga horária é tranquila, com aulas entre 8:45 até 13:00, com mais um tempo flexível na tarde e noite para fazer tarefas e praticar.  O CDC está infestado de brasileiros (algo como dois terços dos alunos), um monte de graduandos vindos via Ciência Sem Fronteiras. Já no grupo de bolsistas de doutorado do DAAD que chegou comigo, só mais um brasileiro. Tivemos um tratamento diferenciado, no qual eles nos ajudam a fazer uma série de procedimentos burocráticos, como abrir conta no banco, fazer o registro de moradia na cidade, solicitar visto de permanência, etc. Em meio a tantas reuniões e atividades extra-aula, mal tivemos tempo para respirar na primeira semana, e os pequenos demônios mentais não tiveram muita oportunidade para pentelhar. Em pouco tempo eles passaram a ser soterrados pela nova rotina, e não mais tive dúvida de que tinha acertado ao vir aqui, mesmo com saudades do que tinha lá.

A parte mais difícil tem sido a adaptação à nova casa, de doze anos morando sozinho e próximo do trabalho/local de estudo, para uma moradia compartilhada longe pra cacete de tudo. Felizmente, parte disso vai se resolver, pois em Janeiro mudarei para um lugar bem mais próximo. É só torcer para não cair em uma casa de família cheia de regras, pois, convenhamos, não sou mais um gurizão de 19-20 anos recém-saído da casa dos pais. "Mas e o clima, Félix? Não é a pior parte?". Sim, amiguinhos o clima é uma bosta. Ou é muito frio, ou chove, e ver o azul do céu é uma bênção rara. Mas, até o momento, tem sido mais fácil de lidar do que eu imaginava.

Apesar de Colônia ser uma metrópole essencialmente econômica, ainda tem muita coisa legal para ver, desde resquícios do passado romano até obras modernas. Já tive oportunidade de passear por algumas cidades da redondeza também, sair com galera, etc., mas vou deixar para falar mais sobre a cidade e a vida na Alemanha em um momento posterior. Este texto era mais para descrever o momento de transição, enquanto as coisas ainda estavam frescas na minha cabeça. Também quis postá-lo agora para abrir caminho para mais alguns tradicionais textos de viagem felixianos, pois amanhã embarcarei em uma viagem de duas semanas pela Itália. Lá também é inverno, mas depois de três semanas com temperatura sempre abaixo de 10 graus, acho que nos 17 de Nápoles até vai rolar umas Havaianas...

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

And the story ends...

               E eis que estou de volta, dos trinta e cinco graus da Grécia para os dez de Floripa. Voltar para o frio e trabalho é meio deprê, mas também tem bastante coisas boas, principalmente reencontrar as pessoas e dormir na própria cama. Mas vamos logo ao resumo desta última semana, além das conclusões finais desta viagem.
               A nova jornada grega começou com o único estresse verdadeiro desta viagem. Meu vôo de Dublin ia para Londres, e dali pegaria outro para chegar às seis em Atenas, e dali eu teria duas horas para atravessar de um lado a outro da região metropolitana e pegar o último barco do dia para Égina. Se pegasse as malas rápido, daria para pegar o trem das 18:33. De outra forma, teria que abrir o bolso e pegar um taxi. Mas tempo tinha de sobra, bastava o vôo não atrasar.
               Na verdade, ele podia até atrasar. Quinze minutos. Meia hora. Quarenta e cinco minutos. Só não dava pata atrasar UMA HORA E VINTE, como aconteceu. E não foi por algum imprevisto muito acidental, pois quando cheguei em Londres, dez da manhã, já indicava lá que atrasaria todo esse tempo. Passei as próximas horas fazendo cálculos mentais e cada vez mais vendo que não iria rolar. A internet gratuita do aeroporto não funcionava e a amada British Airways nem me deixou entrar na sala vip para minimamente compensar o seu vacilo. O jeito foi pagar por alguns minutos de internet, para avisar o dono do hotel em Égina que eu talvez não chegasse a tempo, e fazer uma reserva às pressas em outro hotel na beira do porto. Teria que dormir por ali mesmo e ir para Égina na quarta de manhã, ficando sem um dia inteiro sossegado para a ilha (já que, no plano inicial, voltaria na quinta de noite).
               Se eu chegasse em Atenas em um horário que sem dúvida impossibilitasse a chegada, teria parado de me preocupar. Mas o vôo chegou exatamente às sete. Então a passagem pela capital começou da mesma maneira que terminou a última: correndo. Fui apressado para a esteira da bagagem, e foram torturantes minutos até ela aparecer. Nova corrida para sair do aeroporto, mas, como os ingleses são chatos e paranóicos, cheguei em um terminal que me obrigava a passar novamente pelo controle de passaporte. Ali, dei a furada de fila mais linda desse mundo, e logo estava liberado para chegar nos táxis. Era sete e vinte. Perguntei para o taxista quanto era e quanto demorava. Cinquenta euros e mais ou menos meia hora. Esse "mais ou menos" me deixou de cabelo em pé, pois não tinha tempo para "mais". Imagina gastar essa grana e no fim não chegar a tempo. Falei que tinha que estar lá em menos de meia hora, e o taxista (que não falava inglês) fez uma cara de "é, talvez". Toquei aquele foda-se e pulei no carro.
               E, também como ano passado, no fim deu tudo certo. O taxista tocou o pé fundo pelas rodovias da Grande Atenas, e cheguei no porto efetivamente em meia hora. O porto é enorme, mas felizmente os "flying dolphins" (barcos menores e mais rápidos que os ferries, acho que a tradução é "catamarã") ficam perto da entrada. Foi uma corrida curta para o balcão de bilhetes, pegar o meu comprado online (tinha isso ainda), e mais outra para chegar ao barco, cinco minutos antes da partida. Só então pude relaxar e curtir o rápido trecho de quarenta minutos até a ilha.


Égina

               Chegando lá, logo encontrei a pousada, que era bem próxima do porto. Um estabelecimento como o de York, pequeno, bem cuidado e confortável. O dono me recebeu muito bem. Era um ex-engenheiro naval que amava o Brasil, pois havia conhecido muito do litoral no início dos anos 80 (incluindo Floripa), e desde lá nunca tinha voltado. Ficou me fazendo um monte de perguntas, sobre se era muito caro comprar uma casa, se estava muito perigoso e etc. Também me deu todas as dicas de onde comer, para onde ir, horários, etc.
               Depois de estabelecido, desci para perto do porto novamente, que é onde se concentra a vida turística na pequena Égina. A ilha tem pouco mais de dez quilômetros de extensão nos dois eixos e a maior concentração demográfica é mesmo na Cidade de Égina, dominada por pousadas, tavernas e outras comodidades turísticas. Interessante pensar que, mesmo tão pequena, a ilha já teve grande relevância no passado, sendo uma rival de Atenas no início do período Clássico e, por uns breves anos, foi a primeira capital do novo estado grego, quando a guerra pela independência contra a Turquia estourou no século XIX.
               Mas meu interesso no momento era menos em história e mais em comida. Não tinha comido realmente bem muitas vezes nessa viagem, fosse por preços (Copenhague!), tempo entre passeios ou simples falta de interesse na culinária local (peixe com batata, sério?). Então decidi enfiar o pé na jaca na Grécia, a começar, claro, por uma excelente salada grega e polvo frito. Bem comido (ui!), já passavam das onze, então voltei ao hotel rápido para dormir, pois tinha acordado seis da manhã (embora com duas horas de diferença no fuso).
               Levantei às dez e pouco, pronto para fazer o passeio planejado do dia. Comi um "brunch" (que frescura!) de leve e fui alugar uma bicicleta. Minha idéia era atravessar a ilha no sentido oeste-leste, pela estrada que passava entre os morros e tinha alguns pontos de interesse, até chegar no Templo de Alfaia. Eram 16 quilômetros, relativamente sossegado, pois tinha o dia todo para isso.
               Bem, depois de cinco minutos com o caminho suave e constantemente subindo, pensei que ia morrer antes de chegar. Com meu fitness de jogador de computador e uma bicicleta nada adequada ao meu tamanho, estava complicado, então comecei a intercalar longas subidas a pé com curtas e gloriosas descidas sobre rodas. Depois de mais vinte e cinco minutos, sob o sol a pino, tive a encantadora visão da segunda maior igreja ortodoxa grega do mundo (após Hagia Sophia), a Ágios Nectários, em meio aos morros. Encantadora nem tanto pela igreja em si, que é uma construção da década de 90 que está cheia de andaimes no interior, mas porque marcava metade do caminho.
               Ao lado da igreja, ficava uma coisa que realmente valeu o esforço e mais um tanto de subida para visitar. A Palaiochóra ("cidade antiga") de Égina é o local para onde as pessoas começaram a se estabelecer no século IX, devido aos ataques de piratas nas partes mais baixas, e virou a capital da ilha. No século XVI, sofreu um pesado ataque turco e foi sendo abandonada nos séculos seguintes. O que sobra hoje em dia são algumas casas e igrejas abandonadas nos morros, que podem ser alcançadas por trilhas estreitas de pedra ou barro. É o tipo de coisa que faz minha cabeça, ainda mais considerando que eu era o único disposto (ou louco) o bastante para explorar a área sob o pesado sol da uma da tarde. Depois de tudo isso, Deus recompensou minha devoção com uma fonte de água fresca na entrada de um monastério próximo, pois a minha garrafinha já tinha se esgotado há tempos. A água saía tão fresca que foi até possível usá-la para devolver meu Snickers a algo próximo do estado sólido.
               Depois desse ponto, fiquei feliz da vida, pois o caminho virava praticamente só descida e área plana. Isso até uns dois quilômetros do templo, quando começou uma subida de matar. Lá fui eu arrastando a bike, buscando agradar agora aos deuses gregos, que adoram colocar suas casas nos lugares mais altos. Cheguei depois de mais meia hora a partir de Palaiochóra e pude visitar o sítio de um dos mais bem preservados templos gregos. O que não significa ter um teto, claro, mas a maioria das colunas e boa parte das paredes de pé. Se achava anteriormente que o templo era dedicado a Atena, mas foi descoberta uma inscrição votiva a Alfaia, uma divindade grega que (para variar) Zeus deu um pega, e decidiu vir para Égina depois disso. Foi um lugar muito legal de conhecer, um sítio interessante em um cenário maravilhoso. Não precisava ter deixado metade do meu dedão em uma pedra nos primeiros passos, mas tudo bem.
               Parei um tempo para almoçar um sorvete no boteco ao lado do sítio (valeu pelo Band Aid, tia!) e comecei a volta. Descer a morreba antes do templo foi lindo, e depois comecei o sobe-empurra. Tudo ia muito bem até que, em uma troca de marchas, a corrente da bicicleta escapou e travou nas engrenagens de um modo impossível de tirar sem ferramentas. Talvez tenha sido Deus novamente, agora brabo pela minha visita aos colegas pagãos, pois isso ocorreu bem na frente de Ágio Nectários. Na verdade, tive sorte no meu azar, pois, inversamente à ida, o caminho dali até a Cidade de Égina foi praticamente todo descida, então só subi na bicicleta e deixei a gravidade fazer seu trabalho.
               Apesar dos detalhes, foi um passeio de cinco horas muito gostoso. Durante as subidas, por diversas vezes pensei que podia ter trazido a carteira de motorista para alugar um quadriciclo. Mas, por outro lado, penar na bicicleta dá aquela sensação de realização quando você chega, afinal (e custa só cinco euros!). Feliz, voltei à pousada, tomei banho, desci para comer a única refeição de verdade do dia, e pude morgar no ar condicionado do quarto até dormir, uma da manhã (ainda efeito da mudança de fuso). Antes disso, falei com o dono da pousada para ficar mais um dia lá, pois tinha descoberto uma combinação de barcos que me permitiria ir a Míconos quinta de manhã, em vez de ter que dormir ao lado do porto na quarta feira.
               Sossegado e com mais um dia inteiro por Égina, levantei depois das onze. Almocei um fast-food grego (espetinhos de carneiro!) e fui para o sítio arqueológico da própria cidade antiga de Égina, ao lado do porto. Ali, um pequeno museu explicando o desenvolvimento do sítio desde a Idade do Bronze, e o sítio em si. Dentre as ruínas escavadas, remanescentes tanto dos períodos mais antigos (terceiro milênio a.C.) quanto dos mais recentes (romanos e bizantinos), com destaque para o templo de Apolo do período Clássico (do qual só uma coluna solitária permanece de pé).
               Fiquei no sítio até a hora de fechar, às três (lembram que os gregos não são de trabalhar muito, né?). Dali, fui novamente ao cara das bicicletas, dessa vez para percorrer a ilha no eixo norte-sul, por uma estrada que vai margeando a costa. Se no dia anterior tinha ocorrido um acidente infeliz, dessa vez a bicicleta era ruim mesmo, e, das seis marchas, duas não funcionavam. Bem, o que eu poderia esperar por apenas cinco euros? Pelo menos era boa para o meu tamanho, e o caminho era predominantemente plano. Entre paradas para fotos e para colocar a corrente no lugar, levei uma hora até Pérdika, o vilarejo na ponta da ilha. Pausa para ver o mar tomando uma cerveja, e retorno à Cidade de Égina. Terminei o dia com mais uma janta arregada (incluindo um molho de ovas de ouriço-do-mar que, embora gostoso, gerou uns efeitos colaterais no dia seguinte) e fui dormir.
               Na quinta, comecei o dia com o pesadelo de acordar seis e pouco da manhã, para pegar o primeiro barco para o porto de Atenas, sete horas. Nenhum percalço ou atraso, então cheguei bem na hora, sete e quarenta, com tempo de sobra para caminhar até o enorme ferry que saía para Míconos, oito e cinco. Bem estabelecido dentro dele, foi só sentar e deixar passarem as cinco horas de viagem até o último destino da viagem.


Míconos
  
             Ao chegar em Míconos, já pude experimentar o atendimento diferenciado aos turistas de lá. A dona da minha pousada estava esperando na saída do barco, para me levar até Platis Yalos, a praia onde ficaria. Também, por noventa euros a diária, tinha mais é que me levar e fazer o almoço ainda! O lugar não era a beira-mar, mas muito próximo da praia, e bastante confortável, como todos os lugares pelos quais já passei nas ilhas gregas. Eles chamavam de "studio", mas era basicamente uma quitinete. Se pensar bem, o preço elevado era só para mim, pois nenhum lugar que vi em Míconos fazia preço diferenciado para viajantes individuais, todos os preços eram para duas pessoas. Noventa euros por um bom lugar para duas pessoas na ilha mais pop da Grécia durante a temporada não é um absurdo (Copenhague, Londres, estou olhando para vocês!).
               E Míconos é sim, definitivamente, a ilha mais pop da Grécia. Não há nada lá além de turismo (nem cursos d'água naturais, por exemplo). As pessoas procuram a ilha basicamente pelas praias e pela vida noturna baladeira, então o que não falta é a "galerinha descolada". Mesmo assim, ainda é um lugar aprazível para famílias ou pessoas com espírito geriátrico como eu, pois há espaço para todos e nada fica extremamente lotado. As  praias são pequenas em tamanho, e muitas são completamente ocupadas por cadeiras e guarda-sóis para alugar dos restaurantes e hotéis adjacentes. Mas ainda é possível encontrar prainhas menores com areia de sobra para as pessoas se estirarem ao sol. A fama do nudismo lá é verdadeira, mas, garotos, não se iludam: vocês verão muito mais bundas masculinas viradas para cima do que moças se mostrando. Não fui, efetivamente, para as praias superpop de nudismo (Paradise e Super Paradise), mas em todo lugar tem um ou outro sem roupa, de todas as formas e idades.
               Como meu objetivo principal era menos prosaico que praia e pele, e tendo madrugado, fui dormir cedo na quinta. Acordei às sete, para fazer um café rápido e pegar o ônibus para a Cidade de Míconos (como o usual na Grécia, a principal vila da ilha recebe o nome dela). Ali, foi evidente o que a dona da pousada tinha me falado antes, que "ninguém acorda cedo aqui", pois caminhei um pouco pelo lugar até as nove horas e tinha raríssimas almas vivas se movendo no meio das ruelas. Uma vendinha ali, um tiozinho lavando a calçada aqui, um grupo de turistas da terceira idade lá... Foi bom para tirar algumas fotos de cartões postais da cidade sem uma pessoa pelo caminho.
               Mas não tinha acordado cedo para acompanhar os velhinhos, e sim para pegar o primeiro barco rumo ao principal motivo da minha estada ali: a ilhota-santuário de Delos, vizinha de Míconos. Tinha que fazer o tempo render, pois o tempo no sítio é limitado (para quem gosta dessas coisas), já que o último barco voltava às 14:00. Após meia hora de navegação, desembarcamos em um dos sítios arqueológicos mais importantes da Grécia.
               Delos não tem nada. Nunca teve. A ilha é pequena, árida e sem espaço para cultivo. Assim, é estranho pensar em como virou um santuário grego de importância panhelênica durante a época Arcaica e Clássica, nos mesmos moldes que uma Olímpia ou Delfos. Alguns de vocês devem se lembrar, das aulas de História da escola, da "Liga de Delos", o nome dado à aliança forjada e liderada por Atenas após as guerras persas, no século V a.C.. A importância do local é mais antiga, entretanto, sendo centro de culto desde o milênio anterior, e citada na mitologia grega como local de nascimento de Apolo e Artemis, duas das divindades mais populares da Grécia Antiga. Curiosamente, na época Helenística e Romana, a importância do local se manteve, mas de uma forma bem diferente: virou o principal centro de comércio daquela parte do Mediterrâneo, com os ricos comerciantes construindo casas e monumentos nos intervalos entre os negócios. Mesmo em termos contemporâneos é difícil de acreditar que aquele pedacinho de terra, com uns cinco quilômetros quadrados, chegou a ter trinta mil habitantes nesse período (sem produção própria alguma).
               Há sítios que são importantes historicamente, mas nada impressionantes atualmente. Não é o caso de Delos. Graças ao fato da ilha não ter nada, sobreviveu relativamente intacta aos milênios, e hoje o visitante pode caminhar em meio a um conjunto impressionante de ruínas. Há restos de templos, dos quais só restaram as fundações e ocasionais colunas. Há quarteirões inteiros de casas anônimas, no qual é possível perder-se e explorar à vontade. Há casas relativamente intactas, nas quais os mosaicos mitológicos do chão podem ser vistos in situ (neste caso, logicamente, com cordinhas protetoras). Há remanescentes que nada mais são do que uma pilha de pedras atualmente, mas continuam evocando sentimentos diferentes ao você pensar que aquele ponto no alto do morro, de onde você tem uma vista fantástica, era o Santuário de Zeus e Atenas.
               Delos é um dos sítios mais legais que já visitei. Mesmo depois que outros barcos chegam trazendo seu carregamento de visitantes, o tamanho do lugar impede qualquer amontoamento, e a caminhada em meio às ruínas é quieta e tranquila. Ficam dois pontos negativos. Um é o pequeno museu, que segue o que parece ser o padrão dos museus das ilhas gregas: pouca organização e pouca informação sobre as poucas peças expostas. O segundo é a falta de informações no próprio sítio. As ruínas mais importantes estão bem sinalizadas e com cartazes explicativos, e você ganha um folder com algumas indicações. Mas é fácil se perder na maior parte do local, e não ter idéia se o que você está olhando é o Santuário de Hércules ou só mais algumas pedras caídas (ou, pior, se é o Templo de Serápis A, B ou C!). Talvez seja ação da Máfia dos Guias, que pulam nos turistas logo na saída do barco. Uma possibilidade é comprar um livreto com maiores indicações e saber mais sobre cada lugar. Mas, mesmo do modo como fiz, as quatro horas lá foram pouco e nem pude alcançar alguns lugares mais afastados. Ficava ali fácil mais duas horas. Deu até vontade de voltar outro dia, mas fica para uma próxima viagem.
               Tendo cumprido meu único verdadeiro "compromisso" em Míconos e sem pressa alguma, voltei à Platis Yalos, para almoçar. Comi bem demais nesses dias lá, porções deliciosas de frutos do mar e as substanciosas saladas gregas. Os preços são mais altos que nas outras ilhas, claro, mas ainda é possível comer muito bem por 15-20 euros (fora a cerveja), ao menos ali onde eu estava. Não gastei tanto também porque, além do café da manhã, uma refeição por dia fazia no studio mesmo, mais por preguiça de sair do que por falta de grana. Sim, cruzei o oceano para comer ovo frito em Míconos. Mas tava gostoso, ok??
               Por aquele dia foi só. Para compensar a acordada cedo, entrei no espírito de Míconos e estiquei a preguiça até onze no dia seguinte. Fiz tudo em marcha lenta: tomei café, fiquei morgando no ar condicionado/internet, e às três saí para caminhar pelas redondezas. Através de um caminho no costão, fui passando por pequenas prainhas até chegar em um pontal rochoso que se projetava uns duzentos metros mar adentro, onde deu para ter uma vista legal dos arredores. Claro que, em Míconos, isso significa também ter a vista de um velhinho pelado tomando banho nas pedras, mas tudo bem.
               Na volta, parei em uma praia mais sossegada para tomar um banho de mar e ficar rolando no sol. As praias gregas são piores que as do Brasil no sentido de que o substrato é de areia muito grossa ou pedras. Por outro lado, são calmas, pouco frias e com uma transparência fenomenal. Pena que só lembrei tarde demais de comprar um óculos de mergulho, pois dá para ver bastante sob a água. De volta ao studio perto das sete, tomei banho e saí para jantar. Foi um dia literalmente de férias.
               Domingo, o último dia, não foi muito diferente. Acordei mais cedo (às dez!) e fui para a Cidade de Míconos, dar uma passeada efetiva por lá. O Museu Arqueológico é aquela coisa que disse antes, mas este realmente se destacou no quesito "falta de informação". Mais interessante foi uma mostra que estava ocorrendo em um espaço no porto, com reconstruções de invenções do período helenístico grego. Impressionante ver a criatividade dos figuras para criar, sem nenhum combustível além da gravidade e força hidráulica, relógios, máquinas, calculadoras, armamentos, autômatos humanos (!) e mini-teatros capazes de reproduzir uma peça inteira apenas com o puxão de uma corda.
               Gastei mais algum tempo caminhando pela vila em si, que é no mínimo interessante. Não pelas lojas de badulaques para turistas, que permeiam cada esquina, mas pelo próprio labirinto de casas brancas e ruelas estreitas (só para pedestres, pois nem cabe um carro ali). É muito fácil de perder ali no meio, e dei algumas voltas a mais antes de achar a estação de ônibus. Como os preços dali são mais inflacionados, fui almoçar em Platis Yalos mesmo. Terminei às quatro, e deixei a comida baixar no studio até cinco e meia, quando fui para a praia novamente. Após uma hora lá, voltei para arrumar as malas, terminar as comidas que tinha comprado, e enrolar até a hora de dormir.
               Na segunda, foi só acordar, tomar café e ganhar outra carona até o aeroporto. Não foi a primeira vez que me incomodei com a confusão que é a Star Alliance, na qual você compra passagem por uma empresa, mas tem que fazer check-in por outra, mas que não faz check-in para todos os trechos, e também não mostra o assento que tu reservou com bastante antecedência no vôo intercontinental, e no fim não te dá o bilhete para esse vôo (mas sim para aquele que não dava para fazer check-in!), e você tem que resolver só no outro aeroporto onde tem um balcão da empresa que tu comprou a passagem. Não dá para negar a conveniência de poder ir a qualquer destino com as parcerias e de ganhar as milhas, mas toda vez que tenho que lidar com coisas da Star Alliance dá algum rolo.
               Míconos e Égina não pode ser mais diferentes uma da outra, mas ambos foram lugares que valeu bastante ter ido. Égina é menos badalada, de fácil acesso, visitada principalmente por gregos. Pequena, fácil de circular e com um número bem razoável de coisas históricas para ver, considerando seu tamanho, sua beleza está na sua naturalidade. Míconos é o oposto: super famosa, lotada de estrangeiros, montada para atrair e capturar turistas. Fora Delos, um sítio obrigatório para todos os interessados no assunto, não parece dar grande valor à sua história, e as outras pequenas coisas que lá existem (sítios micênicos, prehistóricos, medievais) não ganham muita atenção. É um destino para quem quer mesmo aproveitar as praias, o clima mediterrâneo e as comodidades turísticas (ou para pirar nas baladas, claro).
               Nos dois casos, essa última semana na Grécia foi como eu tinha planejado: com bastante tempo para ver relativamente pouca coisa. Afinal, viajar e conhecer mil coisas é bom. Mas simplesmente tirar férias também, e é o que fiz nesses últimos dias. O diferencial lá, e que continua me apaixonando na Grécia, é que tudo pode ser encontrado no mesmo lugar. Diversão, paisagens, relaxamento, história. Você vai na praia, curtir a água transparente e o clima quente-mas-não-muito, mas logo ali, acima das pedras do costão, tem uma acrópole com cinco mil anos de história. E, nas ilhas pequenas, como essas, tudo fácil de acessar. A única coisa que me arrependi um pouco foi de não ter trazido minha carteira de motorista. Não posso dirigir moto e carro sozinho é muito caro, mas nessas ilhas está cheio de quadriciclos alugar. Míconos tem um sistema de ônibus razoável e Égina permite passear de bicicleta, mas um veículo motorizado para explorar todos os cantos das ilhas nesses dias teria sido legal. Nada que diminua o quão bom foi esse final de viagem por lá.


Epílogo

              E eis que termina essa minha sequência de viagens européias. Finalizo tendo visitado as principais capitais que são ricas em coisas que gosto. Com poucas exceções, já vi os principais zoológicos, museus de arqueologia e história natural do continente, e tenho um currículo de sítios de fazer inveja a muito arqueólogo. Além disso, conheci com mais profundidade alguns países (Alemanha, Grécia e Turquia). Ainda existe uma imensidão de coisas para ver lá. Não fui para a Península Ibérica nem para a Escandinávia, embora não sejam lugares que me atraiam particularmente. Ainda estou devendo uma pernada no leste europeu, com suas antigas e cênicas capitais. Quero muito fazer passeios mais longos por França e Itália, pois só conheci as capitais. E, na própria Grécia, ainda não conheci a parte continental, além de existirem várias ilhas que ainda valem uma visita.
               Mas agora é hora de mudar de ares um pouco. Tem bastante coisa no mundo para conhecer, paisagens, culturas e sítios diferentes para ver. É bom dar um tempo das mesmas coisas, para no futuro voltar e ver uma nova igreja ou peça de museu como algo mais que só mais uma igreja ou peça de museu. Em alguns momentos nessa viagem achei que estava vendo mais do mesmo, mas também tive muitas experiências novas ou que superaram as passadas. Isso é natural, qualquer pessoa mais viajada fica mais crítica, comparando o que está vendo com o que já viu. Então, Europa, tivemos uma excelente sequência juntos, mas agora vou atrás de novos horizontes. Com certeza voltarei, só não sei se daqui a um ou cinco anos (dez é demais!). E, de qualquer forma, já venderam todos os ingressos para o próximo Wacken, então nem rola mesmo!


Resumo do resumo

Melhor momento: meu perdão à História, mas sem chuva não tem para ninguém. Wacken bicampeão!

Outros momentos de destaque: British Museum, York, Glendalough, Égina, Delos.

Menos melhor momento: Dublin. Mas acho que foi mais por estar cansado que pela cidade mesmo.

Lugares para voltar logo: tá, eu vou falar Grécia e Wacken de novo, cadê a criatividade?

Lugares para não voltar tão cedo: estou de boa de todos os lugares nos quais fiquei mais tempo desta vez. A Dinamarca não tem coisas a mais além do que já vi que valham a exploração. Tive bastante tempo em Londres, mas o resto da Grã-Bretanha é outra história. E teria que pesquisar mais a fundo para achar coisas que façam valer a pena voltar à Irlanda.

A conta: não sei, não quero saber e tenho raiva de quem sabe. Só sei que ficou bem mais caro que nos anos anteriores, mas não tenho idéia de quanto.

Palavra final: e que venha a América do Sul!