sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

A Cidade Eterna


Roma foi um dos lugares que mais me marcou na minha primeira viagem, tanto pela cidade em si quanto por não ter conseguido aproveitá-la ao máximo. Ficou um gosto de quero mais, e era o único destino certo quando decidi passear pela Itália. Mas ela não podia estar mais diferente do que da última vez. Tendo na memória uma cidade escaldante, bagunçada e lotada de pessoas, o que encontrei foi uma temperatura agradável, uma certa organização (ressaca pós-Nápoles) e uma atmosfera sossegada. Ainda muitos turistas, claro (pencas de brasileiros, pra variar), mas nada de trânsito barulhento ou muitos vendedores folgados querendo se aproveitar. Fora dos pontos principais, dava até para chamá-la de "tranquila".

Dia 25 foi escolhido a dedo para a transição, pois é uma das datas (junto com 1 de janeiro) em que praticamente tudo fecha. Então, após chegar, não fiz mais nada além de ir para a pousada e jantar. Da outra vez eu tinha ficado próximo ao Vaticano, do outro lado da cidade, mas dessa vez achei um lugar próximo da estação central. Em dez minutos eu estava lá, uma guesthouse bem confortável com um dono atencioso e simpático. Como principal diferencial das outras que já fiquei, um "open-frigobar" e coisas para um café da manhã "faça-você-mesmo". Para a janta, o dono me indicou um restaurante logo na esquina, no qual acabei comendo quase todas as noites, pois era realmente bom.

Na sexta, acordei oito e meia e tomei um longo e tranquilo café. Não tinha pressa, pois tinha como plano principal apenas ir a Ostia Antica, na periferia de Roma (os sítios fecham praticamente todos às quatro e meia no inverno). Ir até lá é barato, pois usa o mesmo bilhete do metrô, mas demora um pouco. Entre caminhadas e trocas de trem, demorei uma hora para chegar lá, às onze e pouco. Teria comido menos se soubesse que visitaria um dos sítios mais legais que já vi.

Essa frase pode estar ficando batida, mas efetivamente o lugar me surpreendeu muito positivamente. Ostia Antica era nada menos que o porto principal da antiga cidade de Roma, na foz do rio Tibre. Após ser fundada como um forte na beira do rio, no século II a.C., para proteger contra ataques vindos do mar, cresceu até virar uma verdadeira cidade à parte, com suas docas, templos, prédios públicos, casas de ricos e estabelecimentos comerciais. Como tudo no Império, decaiu e foi esquecida após o século V d.C, constituindo hoje um sítio bem amplo, com muitos prédios mantendo uma estrutura relativamente conservada. Mas até aí nada de mais, não é? Já visitei uma penca de lugares assim. O que tem de diferente em Ostia Antica?

Uma coisa bem simples: liberdade (quase) total. Talvez pela quantidade de visitantes ser muito menor do que de outros lugares mais populares, em Ostia Antica a quantidade de lugares com acesso restrito é muito pequena. Uma hora ou outra você se depara com uma cordinha from Hell ou uma grade, principalmente em certas casas nos quais afrescos bem preservados ainda são encontrados. Mas, de resto, divirta-se. E como me diverti! Literalmente me sentindo uma criança com fichas infinitas no playground, pude ficar o dia todo pulando em meio às ruínas, por vezes subindo no segundo ou terceiro andar dos prédios antigos, ou até me enfiando naqueles que possuíam uma estrutura subterrânea (no que parecia ser apenas um buraco no chão, "descobri" um pequeno templo do Mitra romano, com estátua de culto e tudo). Para quem gosta desse tipo de coisa, de explorar por conta própria cada canto que interessar, e sem muitas pessoas por perto, é um lugar totalmente recomendável. Poucos são os que já me proporcionaram a mesma experiência (Delos, Capadócia).

Mas o sítio não é uma zoeira total, claro. Há um mapa de visitação e plenitude de placas explicativas, principalmente na região mais central (que também é a com mais restrições), então não é só questão de sair correndo pelos corredores. Dá para entender o que são os corredores (afinal, um pedaço de parede é muito mais legal quando era de um templo do que de uma latrina). Por ser um sítio grande onde as pessoas passam boa parte do dia, também conta com um bom restaurante, onde comi um canelone genial.

Fui o último a sair de lá, junto com mais uns gatos pingados, sob os apitos furiosos dos funcionários loucos para ir para casa. Apenas cinco horas foi pouco, pelo menos para gente doida por pedra velha como eu. O retorno foi ainda mais demorado que a ida, pois os trens não são tão frequentes, o que acabou com algumas possibilidades, mas o dia já tinha valido a pena.

No sábado, foi dia de "mais do mesmo": a região central da Roma antiga, com Coliseu, Fórum e Colina Palatina, que estavam a vinte minutos de caminhada da pousada. Mesmo eles não sendo prioridade na minha agenda, escolhi começar pelos sítios pois havia previsão de chuva para domingo e fim do sábado. Ali a minha sensação de cidade tranquila se esvaiu, pois estava tudo tão lotado quando da última vez. Parece que a Itália é um destino bem procurado nessa época entre Natal e Ano Novo, e logicamente ali é o ponto focal do turismo na capital. Já "vivido", evitei a fila de 100 metros  para comprar bilhetes no Coliseu, e fui para a de 10 metros do Fórum/Palatino.

Em três anos, a experiência de visitar as ruínas melhorou consideravelmente. Talvez tenha sido a maior experiência em visitar sítios, ou simplesmente não estar andando sob o sol do meio dia do verão, mas foi bem mais fácil entender a estrutura de um lugar que, mesmo na época antiga, já sofria com o atulhamento de construções. O mapa/guia de áudio anterior, que parecia ter prazer em confundir o visitante, foi substituído por um guia de vídeo (smartphone de novo! iei!) bem mais enxuto e simples de entender. Ele também só funcionava para o Fórum, não existindo guia atual para o Palatino. Seria uma perda muito grande, mas os romanos finalmente decidiram colocar bastante placas explicativas espalhadas pelo lugar, então a informação ainda está lá. Consegui ver (ou melhor, entender) muito mais coisa que antes, o que é normal em um sítio tão complexo (e foi exatamente o motivo pelo qual eu queria visitá-lo novamente). Pelos lados do Palatino, vi partes do ridiculamente grande palácio imperial que nem imaginava que existiam. E, por uma pequena facada a mais, também peguei uma visita guiada pelas recém-abertas casas de Otávio Augusto e Lívia, talvez os personagens mais importantes do início da era imperial, pós-Júlio César.

Faltando pouco para as 15:30, saí correndo para atravessar a praça e pegar os últimos minutos de admissão no Coliseu, usando o ingresso do Fórum para pular a fila. Infelizmente, devido à falta de informação na Internet e algumas dúbias dadas nos próprios sítios, de novo não consegui fazer a visita guiada ao anel superior e subsolo. De qualquer forma, uma das informações é de que os ingressos estavam todos esgotados até janeiro (quem quiser, tem que se planejar mesmo). Então uma hora acabou sendo mais do que suficiente, pois, embora o pouco que tenha seja espetacular, não tem muita coisa para ver no Coliseu, e gastei a maior parte em uma mostra temporária sobre escrita na Antiguidade Clássica.

Bem no final da visita ao Coliseu, a chuva começou a cair. Não tinha almoçado ainda, pois não existe comida dentro daqueles sítios (tática para aumentar a rotatividade?), e tinha passado só com os poucos doces que tinha saqueado da pousada. Então encerrei por ali mesmo, cedo, caminhando rápido sob vento e pingos até a pousada, apenas parando para um almojanta num restaurante próximo.

Domingo meus planos deram certo: o tempo estava ruim! Então foi dia de museu. De manhã, visitei dois rapidamente, ambos logo em frente à estação central e, assim, a uma curta caminhada da pousada. Podia ter ido em algum no dia anterior, mas não sabia que ficavam abertos até 19:30 (os horários limitados no inverno são só para os sítios arqueológicos).

Um foi a monumental Terma de Diocleciano, o maior complexo desse tipo construído na capital. Considerando que termas eram possivelmente o tipo de prédio público mais essencial para os romanos, dá para perceber que não é pouca coisa. Não sobrou muito, e algumas partes foram incorporadas a uma igreja, mas ainda existem salões enormes e paredões de impor respeito. As termas foram a primeira sede do Museu Nacional Romano, assim ainda exibem uma razoável coleção de estátuas e artefatos.

No quesito estátuas, melhor é o setor vizinho do Museu, que fica no Palazzio Massimo, do outro lado da praça. O diferencial dele é que, além de peças muito bonitas, há bastante textos explicativos. Também tem uma coleção de moedas italianas imensa, indo dos primeiros moedões de bronze do século VII a.C. até as recentes, sempre acompanhadas de explicações de como imperadores, papas e reis brincaram com a valorização das moedas, para tentar superar momentos de crise econômica.

Meu tempo ali teve que ser menor do que o desejado, pois a bateria da câmera ameaçou acabar (lição aprendida: jamais deixe de carregá-la de noite, mesmo achando que ainda tem bastante). Então corri para o hotel, almoçar coisas do café da manhã enquanto a câmera carregava. Depois, economizei alguns minutos, passos e pingos de chuva com o metrô e fui para o filé dos museus de Roma (afinal, os do Vaticano estão em outro país, não é?): os Museus Capitolinos, bem ao lado do sítio do Fórum, ocupando a colina onde outrora repousavam alguns dos prédios mais importantes para os romanos.

Os dois museus ocupam a praça no topo da colina, que é completada por um prédio do governo, e possui no centro uma réplica de uma bela estátua equestre em bronze do imperador Marco Aurélio. São principalmente museus de arte, com pouco de arqueologia. Até é possível encontrar algumas informações históricas, mas a maior parte é sobre as peças em si. Como o primeiro museu público do Ocidente moderno (fundado no século XV), a coleção não decepciona: muitas das peças romanas mais legais e famosas estão lá, como a simpática lobinha com cara de assustada alimentando Rômulo e Remo - que na verdade é uma provável obra medieval inspirada por uma da Antiguidade). Achei legal que a maior parte das estátuas da coleção é mitológica, pois nos outros museus é até difícil encontrá-las no meio de todos aqueles retratos de imperadores, familiares e ricos narcisistas.

Em uma ala recém-construída para abrigar o original da estátua que adorna a praça, pode-se ver alguns restos colossais das fundações daquele que era o mais importante templo de Roma, o de Júpiter. Infelizmente, ao contrário de seus vizinhos do Fórum, nem algumas colunas de pé sobraram para contar a história. Então só dá para ver algumas pedras, as maquetes e imaginar quão espetacular ele era.

O corredor que liga os dois prédios também possui resquícios arqueológicos interessantes. Pegando um corredor lateral, mais restos de um templo dedicado a um deus obscuro, incluindo a grande e descabeçada estátua de culto. Ali você chega ao que sobrou do "Tabularium", uma grandiosa estrutura nos fundos do Fórum, que guardava os registros oficiais dos romanos. Sobrou só um grande corredor de frente para as ruínas, de onde é possível ter uma ótima vista destas (principalmente de noite, já que o sítio em si já está fechado).

Dentre andanças por cantos escondidos, leitura e repetidas tentativas de tirar fotos boas sem flash, fiquei nos museus das três até pouco antes de fechar, às oito. E isso que só passei muito batido pela ala de pinturas. Foi um fechamento digno para mais uma estadia em Roma (e, incidentalmente, os únicos museus realmente foda que vi nessa viagem). Só restou comer um último bom jantar, arrumar as malas e me preparar para a próxima parada.

Depois dessas duas visitas, posso reforçar aquela primeira impressão de três anos e meio atrás e dizer com segurança: Roma é a cidade que mais gostei em todas as minhas viagens. Também, pudera: não acho que exista cidade no Ocidente ou Oriente próximo que tenha sido tão importante por tanto tempo (se somar o tempo de república/império e o de núcleo da Igreja Católica), assim como não há civilização antiga que tenha tido tanta influência histórica como a romana (embora eu pessoalmente goste mais dos gregos). Há tanta coisa para ser vista em Roma, inclusive que valem duas ou três visitas, que um viajante pode passar lá por várias vezes sem medo de tédio. Que a Cidade Eterna continue assim, pois eu certamente quero voltar um dia.