sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Resenhas do dia - filmes

Fantasia (1940)

Teve um tempo em que o cinema americano era arte, e não produção mercadológica descartável. Afinal, não é a toa que eles se tornaram o pólo mundial dessa atividade (fadada à desgraça atualmente - e cada vez pior). Muito antes da computação gráfica (que, de uma fantástica ferramenta, se tornou o emblema da mediocridade) e de padrões rígidos de comercialidade, existiam as inovações e a criatividade.

E é aí que podemos situar essa verdadeira obra de arte chamada "Fantasia".

Em seu contexto histórico, a obra foi a terceira na série de desenhos animados da Disney, após "Branca de Neve" e "Pinóquio". Porém, é diferente de tudo o que a própria empresa havia feito antes e faria depois. "Fantasia" não é um desenho de digestão fácil "para toda a família", simples, objetivo e coerente. Nem de perto.

O que temos aqui é uma idéia completamente inovadora para a época, e ousada até para os padrões atuais: juntar obras de música erudita com desenhos animados, sem qualquer forma de diálogo além da música em si. Uma idéia que tinha tudo para dar um resultado desastroso e enfadonho, mas que, graças ao esforço da produtora e do perfeccionismo do próprio Walt
Disney, deu muito certo.

Se o filme fosse lançado hoje em dia, entretanto, possivelmente não teria o mesmo status de clássico. A ação e o humor que encontramos na tela é simplesmente muito inocente. Não há nada da ironia e do sarcasmo que encontramos em animações de sucesso recentes. Mesmo as crianças já possuem a sua dose de "maldade" para preferir humor ácido a humor "bonitinho".

Por outro lado, para quem gosta de música clássica, o filme segue sendo um prato cheio. A intepretação animada que foi dada às obras é bem diferente da original (sim, muitas vezes as composições clássicas possuem uma história subjacente). Mas não foi essa a intenção da Disney, e sim de criar novos mundos a partir daquelas sonoridades. O encaixe entre as imagens e a música é perfeito. São ao todo sete peças principais (e um interlúdio), muitas facilmente reconhecíveis mesmo para quem não entende nada do estilo. Entre as peças, um narrador dá algumas noções do que será tocado, como se fosse em um verdadeiro concerto.

Tudo começa com a "Toccata e fuga" de John Sebastian Bach, em um arranjo para orquestra, com um início de arrepiar qualquer um. As imagens começam com a orquestra normal tocando a música, mas logo se juntando a diversos efeitos especiais: brilhos, silhuetas, montes e abismos que surgem e desaparecem conforme a composição se desenrola. Não é à toa que o filme virou cult entre os hippies dos anos 60: poucas coisas além de uma viagem lisérgica podem ser a personificação mais adequada do "ver a música".

Em seguida, temos uma das minhas obras preferidas de Pyotr Ilych Tchaikowsy, a suíte do Quebra-nozes. Sem os seus trechos iniciais, começamos com o movimento da Dança das Fadas, que é personificado por verdadeiras fadas no desenho. A sequência de imagens mostra a ida e vinda das estações, encerrando com a magistral Valsa das Flores. Cogumelos e flores dançantes seguem fazendo a alegria dos cabeludos doidões.

Essas duas peças constituem sequências chapadas de imagens variadas, sem tanta lógica linear. Por mais que sejam boas, são comparativamente menos interessantes com o que vem depois. As próximas cinco peças todas contam algum tipo de história, com começo, meio e fim.

A terceira é a peça que deu origem a toda a obra. Afinal, foi para revitalizar sua crianção favorita que Walt Disney quis fazer um curta-metragem baseado no "Aprendiz de feiticeiro" de Paul Dukas. A idéia se expandiu, e aqui temos o ponto inicial, na forma do mais emblemático Mickey Mouse de todos os tempos, com roupão vermelho e chapéu de feiticeiro. A linha melódica principal desta música é simplesmente espetacular e um dos símbolos máximos do filme. Como curiosidade, a imagem atual que temos do Mickey foi justamente criada para "Fanstasia", com olhos dotados de pupilar para maior expressividade (antes ele tinha olhos totalmente pretos).

Após um rápido agradecimento pessoal do rato ao regente da orquestra (um feito técnico admirável na época), chegamos àquela que considero a melhor de todas as peças, além de ser a maior, com cerca de 25 minutos. Com uma música fenomenal de base ("O Rito da Primavera", de Igor Stravinsky) o que temos é a história da Terra primitiva contada desde sua formação, passando pelo surgimento da vida, a evolução de formas terrestres, a diversidade dos dinossauros, e encerrando com sua extinção. Aqui o ajuste perfeito da dinâmica musical com a visual atinge sua expressão máxima, pois temos que considerar que não são apenas imagens diversas jogadas ao acaso, e sim uma história coerente que tem que seguir a música. Veja por si mesmo nas cenas da Terra de fogo e água, pré-vida. Como amante de paleontologia, não pude deixar de perceber alguns erros feios na junção de criaturas de períodos muitos distintos da pré-história (algo como uns 100 milhões de anos, mixaria...). Mas a intepretação da Disney até que é fiel à visão científica de 70 anos atrás do passado da Terra. E aqui podemos ver que nem só de leveza e graciosidade que é feito o filme: a luta pela vida não é sobremaneira amaciada, e a extinção é uma parte relativamente pesada.

O pequeno interlúdio é uma brincadeira referente ao som e à imagem, em que uma linha colorida acompanha os timbres e tonalidades de diversos intrumentos. Abre caminho para outra peça: a "Pastoral", sexta sinfonia de Ludwig van Beethoven, ambientada no mundo mitológico grego do Olimpo. Com exceção do trecho dos centauros e cupidos, que é um pouco melosa (i. e. gay) demais, a peça toda é bem divertida (quem não gostaria de ter aquele filhote de pégaso preto em casa?). O Baco totalmente bêbado e o Zeus temperamental dão toques não exatamente infantis a mais uma das melhores partes do filme.

A "Dança das Horas", trecho de "A Gioconda" de Amilcare Ponchielli, é um balé conhecidíssimo que, na visão da Disney, vai ser dançado por avestruzes, hipopótamos, elefantes e aligátores apaixonados, em um ambiente neoclássico / surreal. É maluco, com certeza, mas também a peça mais humorística do filme.

O fechamento é algo nada usual para filmes da Disney, onde geralmente até os aspectos obscuros da vida são suavizados. Não há nada de suave em uma das mais macabras composições clássicas já criadas, "A Noite no Monte Calvo", de Modest Mussorgsky. Tampouco na animação que passa na tela: no topo do monte calvo, o colossal demônio Chernabog acorda na noite de Walpurgis, invocando de suas tumbas toda sorte de fanstasmas, espíritos, assombrações e demônios para dançarem e sofrerem ao seu bel-prazer. A personificação de Chernabog é intensa, é possível sentir todo o poder e malignidade que emana da criatura. Mas esta também é a única peça em que duas composições distintas (e põe distintas nisso!) são executadas. Em um dado momento, o sino de uma igreja começa a tocar, o que incomoda Chernabog e o manda de volta ao torpor no topo do monte, enquanto as assombrações voltam para suas tumbas. Uma fileira de monges carregando velas ruma para as ruínas de uma catedral, ao som da "Ave Maria" de Franz Schubert. Não é preciso ter nem um pingo de religiosidade para concordar que é um fechamento belíssimo para essa obra-prima, pois a música é realmente de trazer lágrimas aos olhos.

Mesmo com todas essas qualidades, o filme foi um fracasso financeiro para os estúdios Disney (só salvos pelo sucesso financeiro do desenho posterior, "Dumbo"), pois foi idealizado para ser rodado em um evento especial, com toda uma infraestrutura de som inovadora, mas muito custosa. Apenas após alguns relançamentos que fez sucesso e adquiriu o status de clássico, além de angariar dois Oscares especiais, uma por avanços técnicos de som e outro pela inovação da união entre imagem e música.

Eu só posso fechar essa resenha recomendando muito o filme. Ao revê-lo agora, além da nostalgia infantil, o que eu percebi foi uma obra única, diferenciada e totalmente fora do usual. Para asssitir de boa, ou em algum estado alterado qualquer, para ver a música e ouvir a imagem. Recomendo a primeira opção, mas é você quem sabe!

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Resenhas do dia- filmes

Filhos da esperança (2006)

Eu vou começar isso aqui de um modo bem direto: assistam esse filme. Se já o fizeram, assistam de novo. Sério.

Estava eu aproveitando alguns momentos de folga e o sinal liberado do Telecine para os portadores do Pacote-Pobre da NET. Deu dez horas, quando começa sessão em todos os cinco canais. Na programação, o que mais me atraiu foi o "Homem de Ferro LEG" no Telecine Pipoca. Como eu lia história em quadrinhos da Marvel e ainda não tinha visto, lá vou eu. Basta os primeiros minutos dos créditos para vir aquela vozona dublada falando o título do filme. WTF??? O que diabos significava o LEG então?

Como prefiro não assistir a asssitir dublado, zapeei nos outros canais para ver se algum aresentaria algo interessante. No Telecine Action, bastou uma pequena legenda ("London - 2027") para chamar minha atenção. Eu curto ficção futurista, mas sabia que tinha 90% de chance de cair em uma tosqueira. Por sorte, acabei me salvando de uma provável ação genérica para cair em um dos melhores filmes que assisti nos últimos tempos.

Parte da minha surpresa positiva foi o fato de que eu não acompanhar tão de perto discussões cinematográficas. Não tinha a menor idéia de que o filme havia sido um dos maiores sucessos de 2006, que teve gente chamando de obra-prima, que a sua não-indicação ao Oscar gerou uma polêmica enorme... Enfim, assisti à obra sem nenhuma opinião pré-concebida a respeito, e garanto: o filme não é só "hype". É foda mesmo.

Começando pelo mais importante, a história e o enredo. O filme se passa em um 2027 totalmente caótico. A premissa básica é que, por algum motivo (que não é e nem precisa ser explicitado), todas as mulheres deixaram de ser férteis e não nasce um bebê há duas décadas. Isso faz as pessoas viverem sem esperança em um mundo onde as tensões sociais, étnicas e ambientais, que vinham se acumulando ao longo do século XX, estouraram por todas as partes. A Inglaterra, onde se passa a ação, é um dos poucos lugares onde existe alguma ordem. Mais para o "alguma" do que para a "ordem", por certo. O autoritarismo e o elitismo passam a ser os carros chefe daquela sociedade. A ambientação é criativa, densa, complexa, daquelas que mesmo sem saber você adivinha que é baseada em uma obra literária (dito e feito, lá apareceu nos créditos "baseado na novela de..."). Não é 100% original, claro, mas o que o é? Você encontra elementos que remetem a obras importantes de ficção "mezzo-futurística", como "1984" e "O fim da infância". Normal. Se não fossem influentes, não seriam clássicos.

O roteiro segue um membro daquela "elite" que leva uma vida desesperançada e vazia, mas que acaba sendo jogado em uma tempestade de acontecimentos de grande relevância. O roteiro não é dos mais acessíveis: embora seja fácil de seguir, as reviravoltas vêm de modo inesperado, personagens aparentemente importantes morrem como moscas e não há tempo para muito chororô e momentos pseudo-emotivos. Ou seja, nada de palavras emotivas ditas com dificuldade antes da morte em uma pausa artifical no meio de um tiroteio. Morreu, morreu e vamos embora. Me agradou muito, dando uma verossimilhança rara ao que acontece. Claro, há coisas que acontecem de forma previsível e alguns chavões ainda estão lá. Porém, está muito acima da média.

Os personagens e o mundo vão se desenvolvendo ao longo da trama, em uma mistura de "momentos-explicação" com pistas mais sutis. Aliás, há muitas sutilezas escondidas, que aparecem apenas em recortes de jornais, fotos ou de maneira subentendida. Veja o filme com atenção, por favor. Afinal, você percebeu que animais de estimação são vistos o tempo? Não é curioso, em um mundo desprovido de crianças?

Mesmo considerando o poder desta parte de conteúdo, que é aquela com o qual mais me importo, tenho que admitir que a maior parte do poder do filme está concentrada na parte técnica. Eu nunca tinha ouvido falar de Alfonso Cuarón (afinal, não vi e nem quero ver nenhum dos Harry Potter), mas tiro o chapéu para seu trabalho aqui. Tudo aqui é feito com exímia habilidade. O recurso das longas tomadas sem cortes, que vem se tornando cada vez mais comum, é utilizado bastante. Aliado a ângulos de câmera mirabolantes e às vezes até esquisitos, funciona bem demais.

A filmagem geralmente é tremida, como se fosse feita com câmera de mão, e acompanha os personagens bem de perto, o que dá ao espectador a nítida impressão de estar inserido na história. O exemplo máximo é a cena climáxica, onde somos literalmente jogados em uma batalha urbana. Até o sangue jorra e mancha a tela da câmera! A boa sacada é que essa imersão na ação ocorre sem que exista um verdadeiro "personagem-câmera". Alguns filmes da nova geração que apelam para o recurso de câmera de mão forçam a barra, e ficamos nos perguntando porque os personagens acham tão mais interessante ficar filmando do que salvarem suas vidas ("Cloverfield", estou olhando para você).

A fotografia também é muito adequada, fria e pesada, adequada ao clima. A sonoplastia idem. Por algum motivo, eu sou muito atraído por filmes que são minimalistas na questão sonora, como é o caso. Adoro quando as cenas tensas são totalmente desprovidas de música de fundo. Daí você percebe o que é uma cena que efetivamente cria esse efeito de tensão, e o que é uma cena tosca que apela para o estouro de ouvuidos para mascarar sua mediocriade. Por fim, as atuações são competentes e, se não dignas de prêmios, fazem muito bem seu papel. Clive Owen, como o protagonista, pode ser acusado de uma atuação fria e indiferente, mas que possivelmente é proposital, pois combina perfeitamente com a proposta do personagem. Quanto ao outro "grande nome", Julian Moore... Bem, só posso dizer que a trajetória de sua personagem é das mais interessantes. Ponto positivo.

Paguei pau demais? Bastante, não é? Mas, se depois de tudo isso, não convenci você a assistir, só posso recomendar que vá ver "Homem de Ferro". E dublado, óbvio. Hollywood produz todo o seu lixo acéfalo especialmente para você. Divirta-se!