sábado, 27 de dezembro de 2014

Transições

Após mal ter me estabelecido em Colônia, não posso dizer que eu estava particularmente sedento por uma viagem. Mas fomos informados no curso de alemão que, nas duas semanas que incluíam o Natal e Ano Novo, ia ter apenas cinco dias "úteis", com aulas especiais para as pobres almas que permanecessem ali. Quem quisesse, poderia ter uma folga, apenas tendo que levar uns deveres a mais embaixo do braço. Não iria ser a qualquer momento que eu teria duas semanas de graça tão cedo. E também seria interessante ocupar a cabeça com os prazeres de uma viagem, evitando a melancolia de passar a melhor época do ano longe das pessoas próximas. Olhei para a janela, vendo o onipresente céu nublado e o vento gelado balançando as árvores, e concluí que seria uma boa dar uma escapada dali.

Com isso decidido, a Itália foi uma escolha fácil. Grécia (sempre) e Península Ibérica chegaram a passar pela minha cabeça, mas descartei logo a primeiro porque, apesar do inverno no Mediterrâneo ser dez graus mais quente do que em Colônia, ainda não é exatamente um clima de praia. E Espanha/Portugal perderam no quesito interesse pessoal, pois desde a minha primeira viagem, quando passei por Roma, fiquei com vontade de voltar lá e também dar uma pernada mais comprida pelo país.

Sem muita cabeça para pensar a fundo naquele momento, e com apenas dez dias antes do início, revirei a internet em busca de passagens a um preço ainda razoável (pois também não é uma época muito barata para viajar por aqui). Comprei a de ida direto para o sul, em Nápoles, e a volta do norte, em Milão, deixando para decidir o recheio depois. Esse só foi definido alguns dias antes, para poder reservar hotéis, e novamente no plano de "menos cidades por mais tempo, fazendo bate-e-volta nas vizinhanças": três dias em Nápoles, três em Roma, um em Florença, quatro em Milão, fora os dias dedicados a translados. Busquei um pouco de informações sobre os lugares e coisas para fazer, mas a maior parte ficou na base do "chegando lá a gente vê".

Domingo de manhã peguei um táxi para o aeroporto (simplesmente não tem transporte público nesse dia a partir de onde moro), ainda embrulhado em casacos e cachecóis, e louco para poder andar um pouco mais leve, pelo menos por alguns dias vindouros.


Nápoles

Incrível como uma viagem de apenas duas horas de avião pode nos levar a um mundo completamente distinto. Saí de uma Alemanha fria, chuvosa, nublada e estritamente organizada, para uma Nápoles fresca, ensolarada e séria candidata ao título de "cidade mais zoada do planeta".

Ao chegar no único aeroporto de uma das maiores regiões metropolitanas da Europa, ao meio dia, o único transporte para a cidade além do táxi era um ônibus para o qual se compra o passe em uma tabacaria nos fundos do lugar. Logicamente, ele atrasou bastante, mas nem me importei: o céu estava claro e o sol conseguia esquentar. Sentir microgramas de vitamina D correndo pelo meu corpo já me deixou animado.

Depois de muito engarrafamento, o ônibus parou na Praça Garibaldi, o núcleo dos transportes públicos, de onde partem as duas linhas de metrô e os trams (nesse caso, ônibus alimentados por cabos elétricos que andam apenas em caminhos pré-definidos, mas compartilhados com outros veículos - basicamente, um trem de superfície que pega trânsito). e onde fica também a estação central de trens, de onde partem trens urbanos e interurbanos. Felizmente minha pousada era a 10 minutos de caminhada dali (teoricamente, quando você se perde pelas ruas o tempo dobra), em uma das vias centrais do centro histórico, ao lado da Catedral. Ao chegar lá, fui bem recebido pelo dono e logo saí para buscar comida e caminhar pelas ruas.

A palavra mais adequada para definir Nápoles é: CAOS. O som de buzinas estressadas é onipresente, todo dia, o dia todo (até domingo), enquanto carros e motos correm por ruas que não tem faixas, mão ou lei. Até tem umas tintas no chão e placas coloridas, mas elas provavelmente fazem apenas parte da decoração de Natal. As faixas de pedestres mal são visíveis, mas não que isso fizesse alguma diferença. E isso vale para os dois lados: pedestres se jogam pelas ruas em qualquer lugar, pois é o único jeito de atravessá-las, driblando motos enlouquecidas que não diminuem a velocidade (em um momento, uma moto buzinou para apressar uma mulher que atravessava... na faixa de pedestres e empurrando um carrinho de bebê!). Justiça seja feita, os veículos não andam muito rápido, mas é por pura e simples questão de sobrevivência.

Nápoles possui o maior centro histórico da Europa, em termos de área. Caminhar por ele, entretanto, é uma tarefa ingrata. Se você quer ter uma impressão realista de como era caminhar por uma cidade grande na Idade Média/Renascimento, sem idealizações, lá é o lugar certo. O troço é um labirinto de ruas muito estreitas. Mesmo as vias que aparecem como principais no Google tem pouco mais do que a largura necessária para dois carros se cruzarem. Some a isso o fato de que carros, motos, pedestres e vendedores dividem o espaço (ou melhor, brigam por ele) e você pode imaginar a confusão. Em alguns lugares, uma "calçada" é demarcada em um lado por postes metálicos, o que só faz diferença para os carros. Mesmo em ruas só para pedestres o pouco espaço cria engarrafamentos de pessoas, tanto que foram criadas até algumas de sentido único (um brinde para quem acertar se esse sentido é respeitado).

Os prédios são altos, com andares e andares de janelas cheias de roupas penduradas. O sol chega no chão apenas em alguns poucos momentos, por exemplo quando pequenas praças se abrem na frente das igrejas. E haja igreja por lá! A cidade também conta com a maior concentração de igrejas por metro quadrado do mundo, em seu centro histórico. É uma atrás da outra, mas a maioria das que eu vi estava fechada por algum motivo (ou motivo algum). A catedral gótica é certamente a mais bonita, embora só por dentro seja possível perceber suas dimensões, já que não há espaço na rua para enxergar direito. A fachada é bem mais simples que as catedrais góticas da Europa central e nortenha, mas por dentro nada se compara às igrejas da Itália. A riqueza de cores, afrescos, mosaicos, mármores e metais decorativos deixa muito para trás as sóbrias colegas setentrionais.

Caminhei pelo centro durante um par de horas e foi Nápoles o bastante para mim. Foi legal, pois a bagunça é tanta e tão caricata que chega a ser divertida (e os italianos se encaixam muito bem no seu estereótipo de efusivos, faladores e barulhentos). Mas foi o bastante para eu tirar o "dia de sightseeing" (aquele de ficar caminhando por aí vendo várias coisas) do roteiro, e buscar locais mais aprazíveis para gastar o tempo. O pouco do que vi fora do centro histórico também não me impressionou muito: ruas maiores, mas o mesmo trânsito, e prédios deploráveis sem o charme bizarro dos do centro (a pessoa que chamou a Itália de "favela da Europa" certamente estava pensando em Nápoles).

Segunda fui direto ao filé mignon do que a região tem a oferecer, um dos pontos turísticos mais famosos do mundo: Pompéia. Peguei o trem que leva ao sítio, a apenas meia hora da estação central, pensando em ficar lá a maior parte do dia e possivelmente conhecer algum dos outros pontos de interesse próximo. Doce ilusão: cheguei às 9:30 e fiquei por lá até a hora do fechamento, cinco da tarde, mal parando para descansar as pernas no meio tempo.

Pompéia era uma cidade de alguma importância no sul da Itália, na época romana, mas não muito relevante no grande esquema das coisas. Seu destino na História foi sacramentado no ano 79, com a violenta erupção do Vesúvio, a menos de 10 km de distância. A lava não passou por ali, mas houve desastres o bastante: o tremor de terra derrubou paredes, a explosão de gás quente varreu telhados e matou os seres vivos, e por fim vários metros de fina cinza vulcânica cobriram os destroços, preservando o que sobrou pelos próximos dezessete séculos, antes do redescobrimento e escavações.

Embora as ruínas dali não tenham a mesma importância histórica das de uma Roma ou Atenas, o que torna a coisa interessante é que elas eram exatamente daquele modo há dois mil anos atrás. Não houveram modificações posteriores, ruas cobertas por asfalto, templos transformados em igrejas cristãs, casas que viraram botecos. Se aquilo parece um boteco, é porque era realmente um boteco romano (e existiam vários em Pompéia). A organização da cidade fica bem evidente, com ruas retas dividindo blocos de prédios públicos ou privados. Pela primeira vez consegui entender com detalhes a estrutura de uma casa tipicamente romana, e várias delas ainda estão com interiores parcialmente conservados, apresentando afrescos e mosaicos (os mais importantes foram removidos para o Museu Arqueológico de Nápoles, mas muitos ainda ficaram por lá).

Uma das coisas mais marcantes desses sítios é que, no meio da rocha formada pela cinza vulcânica, foram encontrados vários espaços demarcando os corpos das pessoas e animais que morreram na erupção. As partes mais frágeis se decompuseram, deixando para trás ossos e espaços vazios, que durante as escavações foram preenchidos com argamassa. Assim, é possível ter moldes da exata posição das pessoas ao morrerem. A maioria desses moldes está também no museu, mas alguns podem ser apreciados in situ.

O sítio é enorme e dá para gastar fácil o dia todo explorando seus meandros. Um restaurante ali dentro garante a sobrevivência dos dedicados exploradores. O guia de áudio toma um certo tempo, mas é peça essencial da visita, pois quase não existem cartazes explicativos. Gastar tempo tentando entender o mapa e para não se perder também é vital. Fico pensando em como seria nos anos 60, quando a área acessível era três vezes maior do que hoje (mas ainda bem que existem as restrições, senão as coisas estariam bem capengas). Como ponto negativo, quase metade das antigas casas que constam no mapa de visitação estavam fechadas, seja para restauração (motivo válido) ou por razões inexplicadas. Já que cada casa tinha alguém vigiando por dentro, pode ser que seja por falta de pessoal. Visitar esses lugares na época dos feriados de fim de ano pode ter esse efeito, além dos sítios fecharem mais cedo (na parte mais quente do ano, vai até 19:30). A grande vantagem é a menor quantidade de pessoas. Na hora final, eu quase me sentia andando sozinho pelas ruas milenares.

O dia então acabou sendo "só" Pompéia. Peguei um McDonalds na estação e me dei por feliz, pensando no que fazer nos próximos dias. A previsão era de sol na terça e nuvens na quarta. Assim, decidi ir para a praia, e no outro dia cedo embarquei em mais um trem para o sul, rumo a Paestum.

Ok, não era exatamente praia que eu buscava, mas Paestum é efetivamente uma cidadezinha litorânea, uma hora ao sul de Nápoles, que no verão vira um agitado destino praiano. No inverno, não passa de uma tranquila redondeza campesina, com nada além de poucas casas espalhadas entre hotéis-fazenda e fazendas-não-hotel.

Isto é, sem contar o sítio arqueológico com três dos mais bem preservados templos gregos do mundo.

Antes de Roma começar a estender suas garrinhas pela península apenina, o sul da Itália era pontilhado de cidades gregas, que foram fundadas a partir dos anos 600-500 a.C. (a região toda, incluindo a Sicília, era conhecida como "Magna Grecia"). Poseidonia era uma dessas, tendo recebido o nome bem menos legal de Paestum após conquista por parte de povos itálicos. Possui uma bem conservada muralha, que demarca uma área muitas vezes maior do que aquela escavada, mas que permanece oculta por pertencer a proprietários particulares.

Da pequena estação de trem, passei por um dos portões da muralha e caminhei dez minutos até chegar no sítio. Ao redor dele, uma dúzia de restaurantes e lojas de souvernirs, uma igreja cristã bem antiga (e bem sem graça) e o museu que guarda os achados. Comprei o ingresso e peguei junto o guia de áudio e vídeo, que nada mais era que um Samsumg Galaxy, se tornando a primeira vez na vida em que um smartphone ficou mais do que alguns minutos na minha mão (e bastaram esses primeiros minutos para eu arranhar a tela, mas ainda bem que ninguém reclamou...).

Embora a cidade tenha passado mais tempo na mão dos italianos, o sítio é bem mais grego do que romano. Na minha classificação arqueológica pessoal, muito científica e complexa, isso significa que é muito mais baseado em fundações e colunas de pedra do que paredes de tijolos. Mas as estrelas dali não são as casinhas de nobres afetados, e sim os três templos dóricos que se mantém de pé. O primeiro com o qual me deparei foi o de Atenas, que já impressiona. Conforme fui caminhando pelo sítio, fui me aproximando dos outros dois, que ficam lado a lado, na outra extremidade. O primeiro deles fez meu queixo cair, pois, além de ser o mais bem conservado, é simplesmente ENORME. Só pesquisando depois na net para acreditar que é menor que o contemporâneo Partenon, pois na hora me pareceu o maior templo que eu já tinha visto. O que fica do lado é o mais velho, construído em 550 a.C., um século antes do outro, mas sua antiguidade fica apagada diante da força bruta do irmão maior.

Chegando perto da uma, e com o céu azul e ensolarado, fiquei satisfeito de ruínas e apenas um pensamento passou a preencher minha cabeça e estômago: ir para a praia comer frutos do mar. Depois de vinte minutos de caminhada rápida, dando a volta no sítio e fugindo de uns cachorros estressados, cheguei lá. Talvez os templos tenham me confundido e eu tenha achado que estava mesmo na Grécia (e no verão!), e que veria uma fileira de casinhas brancas e restaurantes servindo todo tipo de iguaria do mar. A verdade é que, além de ser inverno, o caminho mais próximo do sítio leva a uma parte quase deserta da praia, com um pequeno aglomerado de estabelecimentos fechados. Nenhum ser vivo à vista além de gaivotas. Apenas um restaurante silencioso com uma placa de "aberto" na porta. Entrei nele e fui atendido por um garçom surpreso. Mas deu para sentar do lado de fora, vendo a praia a uma certa distância, e pedir um prato superfaturado de lulas e camarões. Deveriam ter me dado desconto, pois no fim servi de chamariz para mais um casal e um turista solitário pararem por ali. De qualquer modo, a comida estava boa, e deu para dar uma olhada na enorme praia de areia com céu azul, então quase valeu a caminhada de ida e volta.

De volta ao sítio, gastei as últimas horas no museu que guarda os achados dali, até quase a hora dele fechar (18:30), junto com tudo o que tinha por perto. Só restou voltar a Roma. Novamente tinha sido um dia excelente e eu estava satisfeito, mas, como na noite seguinte seria véspera de Natal e eu provavelmente teria que depender de McDonald's, ainda fui em uma pizzaria próxima da pousada. Nápoles clama ser a terra que inventou a pizza (não sei se é verdade), então pizzaria é o que não falta por lá. Mas não pediria uma pizza de presunto com queijo só por ser uma Napolitana legítima, então fui de uma com cobertura mais elaborada.

Sobraram mil planos para o último dia: visitar Herculano, subir o Vesúvio, conhecer o Museu de Arqueologia. O sol resolveu ir embora, trocado por um céu digno de Alemanha, e temperaturas um pouco mais baixas (mas ainda acima dos 10 graus). Depois de passar um dia inteiro em Pompéia, nem fazia tanta questão de visitar o segundo sítio mais importante gerado pela erupção do Vesúvio, mas ele fica a apenas 15 minutos de Nápoles, e no mesmo ponto em que sobem ônibus para o Vesúvio. Então lá fui eu.

No fim valeu bastante a visita também, pois é um sítio com qualidades distintas de Pompéia. É muito menor, ocupando uma cratera enorme cavada no meio da cidade, mas sem se estender a perder de vista. Porém, os prédios estão em melhor estado, e muitos mantém o teto ou o segundo andar. Novamente, muitas das casas mais conservadas estavam fechadas, efeito do impacto da visitação e da pobreza/preguiça do pessoal em investir (muito mais fácil fechar um local para visitação do que tornar essa atividade sustentável, não é?). Fiquei duas horas e meia ali, extraindo tudo o que podia do guia de áudio (novamente imprescindível), então dá para ver que não é um sítio dos maiores.

Na volta, passei na empresa que faz os tours de ônibus para o Vesúvio, ao lado da estação de trem. Perguntei quando teria uma saída para lá. O atendente fez uma cara de "sei lá", falou que tinha que esperar meia hora... Já versado no Conto do Italiano, e considerando o clima meia boca, desencanei do passeio e rumei direto à Nápoles e ao museu. O vulcão mais perigoso do mundo fica para o futuro (se não explodir até lá).

O Museu de Arqueologia de Nápoles tem a fama de ser um dos mais importantes da Itália, e talvez do mundo. A explicação é simples: o grosso dos achados dos sítios vesuvianos estão ali. Além disso, guarda a coleção Farnese, de uma família italiana que há séculos buscava e adquiria esculturas romanas clássicas. Porém, eu havia lido coisas terríveis sobre o estado atual do museu, sobre falta de informação, bagunça, coleções fechadas. Na verdade isso que me fez deslocar para a tarde do último dia algo que normalmente eu reservaria um dia inteiro. A  página deles na Internet não melhorava a impressão, pois era um amontoado de informações dúbias. Cada dia da semana algumas coleções eram abertas de manhã, outras de tarde, e havia visitas guiadas para determinadas coleções de tarde. Além disso, era dia 24, e eu duvidava até do horário de abertura informado (19:30 todos os dias). Então peguei o metrô para lá com um pé atrás.

A primeira impressão foi realmente negativa. Havia uma visita guiada anunciada no painel, mas a guria que vendia os ingressos não sabia de nada, e me mandou falar com o balcão de informações (que estava a dois metros dali). No balcão, a outra mulher teve que ligar para duas pessoas só para descobrir que não, a visita anunciada no site e no painel ao lado dela não aconteceria, porque era dia 24. Ainda bem que eu já estava preparado psicologicamente, então comprei o ingresso e entrei.

A má impressão foi se desfazendo ao passar pelo andar térreo. As críticas todas tinham me passado a imagem de um lugar decadente, caindo aos pedaços, com peças empoeiradas e enferrujadas. Mas o museu possui espaços bem amplos e as peças estão bem dispostas. A coleção Farnese estava aberta (mas com algumas salas fechadas), e conta realmente com algumas peças bem famosas. Ponto interessante para quem ficar impressionado pela "escultura romana": 90% das peças serão descritas como "reprodução romana do século [I-III] d.C. de um original grego do século [V-III] a.C.". Sim, o que os romanos mais faziam eram cópias (muitas vezes em larga escala) de famosas estátuas da Grécia Clássica. Certamente eles incorporavam avanços técnicos e novos detalhes nessas obras, e graças a elas que conhecemos muitas das obras gregas, perdidas no tempo. Mas é uma das coisas que me faz olhar para Roma como um poder essencialmente político e militar. Em matéria de cultura, o que eles geralmente faziam eram assimilar, reformular e disseminar a cultura dos povos conquistados.

Subindo as escadas para o segundo nível, de um lado tinha a coleção numismática e epigráfica, fechada. Do outro, felizmente aberta, a de mosaicos das casas de Pompéia e Herculano. É uma das partes mais legais, pois os mosaicos estão muito bem conservados e apresentam cenas diversas, sejam mitológicas, retratos, animais ou coisas bem prosaicas (até um boneco de palitinho tinha). Dentre eles, talvez o mais famoso dos mosaicos, o que mostra Alexandre, o Grande, combatendo o rei persa Dario. Já tinha visto uma cópia dele no lugar onde foi encontrado, em Pompéia, mas ali estava o glorioso original.

Nos fundos da ala dos mosaicos, se localiza outro dos setores mais importantes do museu. Conforme as escavações vesuvianas eram executadas, os puritanos arqueólogos dos séculos XVIII-XIX eram embaraçosamente confrontados por toda a safadeza que fazia parte da vida dos romanos. Mosaicos e afrescos mostrando casais em posições atléticas e estátuas de deuses inspiradas pelo Kid Bengala surgiam por todos os lados. Para resguardar a moral e os bons costumes, esses achados foram colocado em uma sala com acesso restrito, que depois ficou completamente fechada. Após muito tempo, a "Sala Secreta" foi redescoberta e aberta ao público...

... ou ao menos assim deveria ser, pois era outros setor fechado. Só dava para ver uns vislumbres de fora, quase como espiar a vizinha pela janela do banheiro.


Sem sacanagem na minha vida, subi para o muito aguardado último nível, que concentrava a grande maioria dos achados vesuvianos. Estátuas, utensílios, afrescos, moldes de corpos... depois de dois dias ouvindo o guia de áudio falar o tempo todo "a coisa X foi achada aqui e agora está em exposição no Museu Arqueológico de Nápoles", tudo o que eu queria era ver a coisa X, a Y e a Z.


No segundo andar, um salão central imenso e vazio. Todas as salas laterais fechadas.

Daí fiquei muito puto. Como é que um museu que empossa para si artefatos únicos, peças de importância mundial, e recebe milhares de visitantes (atraídos só pela fama, certamente) consegue ser tão tosco? Pois, se botar no papel, mais do que dois terços dele se encontravam fechados. As justificativas deles são "falta de pessoal", mas não era difícil cruzar com dois funcionários batendo papo em um canto. E o ingresso também não é dos mais baratos. A história do "mais é dia 24!" também não cola, pois essas eram exatamente as reclamações de outros visitantes que tinha lido. Fiquei com vontade de ir lá bater a cabeça da guria da bilheteria contra a da informação até as duas berrarem que me levariam por uma visita guiada até pela sala da faxineira do museu. Mas me conformei, pois já estava preparado para isso, e apenas gastei mais tempo tentando tirar fotos melhores e brincando com as opções da minha câmera nova.

Na noite, Natal via Skype. Felizmente meu computador, que anda cambaleando, colaborou e deu para quase me sentir em casa, tomando umas cervejas e vendo a galera trocas os presentes. Como o dia 25 seria apenas para viajar (afinal, tudo fecha nesse dia), não precisei acordar cedo. Pegar o trem foi tranquilo, fora o atraso de 45 minutos ("normal", segundo os italianos). E foi a vez de mais uma transição, para uma Roma mais fria e que, depois da cidade anterior, até parecia tranquila e organizada. Mas isso é história para outro dia.

Nápoles pode não ser a coisa mais linda do universo, mas tem por perto muitas coisas legais. Valeu ter ido lá, e posso até voltar em um dia de sol, para ver o Vesúvio, e quando a direção do Museu Arqueológico decidir trabalhar direito (ou for trocada por uma coligação Britânico-Alemã). Mas recomendo que os visitantes fiquem relativamente próximos da estação central, pois vão sair muito da cidade. E certamente não irão querer pegar um ônibus ou táxi para chegar lá...

sábado, 20 de dezembro de 2014

Die ersten Schritte in ein neues Neuesleben

(ok, isso provavelmente não está escrito corretamente, mas é apenas uma referência a uma outra mudança, há muito tempo atrás)

Ao contrário de jogar Hellfire no Mega Drive, não é todo dia que se dá um reset na vida inteira. Que se deixa para trás tudo aquilo que faz parte da sua rotina, todo conforto e perrengue do dia a dia, e se embarca em um mundo completamente novo, onde todas as pessoas são novas, cada dia surge uma novidade, e mesmo coisas aparentemente eternas como colocar requeijão no Miojo se tornam coisa do passado. É o que fiz há três semanas, ao trocar o verão brasileiro pelo inverno alemão, onde ficarei durante algumas voltas ao redor do Sol (só que sem sol).

Ok, logicamente estou sendo dramático (mas qual escritor não é?). Mudar-se para meio mundo de distância é bem diferente quando você sabe que é algo temporário e tem uma vida (e um emprego!) te esperando na volta. Se as coisas estiverem complicadas, é só respirar fundo, focar no objetivo que te levou ali e pensar que uma hora acaba. Se for difícil se aproximar de novas pessoas, é só manter as antigas perto do coração (e da voz e imagem - viva a tecnologia!). Não é também como se a Alemanha fosse uma sociedade completamente diferente e eu já estivesse tendo convulsões por abstinência de Coca Cola. Ainda estou no mundo ocidental, e a globalização já fez sua parte para que ninguém se sinta tão estranho ao mudar de hemisfério. Mas também não tenham dúvida: quatro anos é um tempo longo, e as coisas aqui são diferentes. Já ter passeado pelas redondezas ajuda, mas o mundo asséptico do turismo não é a vida real. O negócio é esquecer os receios e cair de cabeça.

Alguns me perguntaram: por que a Alemanha? Para o sisudo comitê de seleção do Doutorado, é claro que a resposta foi "pois o orientador é muito bom, o grupo de trabalho faz exatamente aquilo que eu quero fazer, e o país fornece ótimas condições materiais e intelectuais para o estudo". Tudo isso é a mais pura verdade, logicamente. Eu não daria um migué tão grande só para me jogar para outro país. Gastar muito tempo de vida apenas para cumprir tabela no trabalho e esperar o relógio tocar para curtir o tempo livre não estava me deixando muito feliz nem no Brasil, quanto mais aqui. Porém, muitos outros lugares do mundo ofereceriam esses benefícios profissionais.

A escolha pela Alemanha é, sem dúvida, por interesse pessoal (foi mal, DAAD!). Já há vários anos, muito antes de fazer minhas primeiras viagens turísticas, eu passei a me reconectar com as raízes culturais da minha família e da cidade onde nasci. Quando criança/adolescente/neoadulto, eu não valorizava isso muito mais do que na hora de ir para uma Oktoberfest meia boca tomar chope da Kaiser. A língua alemã era só um troço de sonoridade muito engraçada que as tiazonas e velhinhos cuspiam nas festas. Mas, do mesmo modo que a Oktoberfest botou para fora o axé e o sertanejo para reencontrar sua veia teutônica (com direito a Eisenbahn!), meu interesse geral por história e por coisas do passado me fez querer conhecer melhor, e sentir mais de perto, a minha origem pós-Adão e Eva. Do mesmo modo, o olhar crítico com o qual eu olhava os conhecidos que desprezavam o Brasil e queriam se achar amigos de Facebook do Otto Von Bismarck me fazia pensar: se não somos alemães (não somos de modo algum, só acha isso o blumenauense tradicionalista que nunca meteu o nariz para além de Pomerode), mas também não somos exatamente brasileiros típicos (afinal, estamos aqui há bem menos tempo do que portugueses e espanhóis)... quem somos? Até onde aquilo que somos hoje tem a ver com o que fomos, e quais as diferenças que 160 anos de evolução cultural dos dois lados levaram? Isso é algo que não se sente de verdade em um passeio apressado por pontos turísticos. Só morando mesmo por algum tempo para saber.

E tem as cervejas e os shows de metal, óbvio. Mas isso é apenas um pequeno bônus a mais (mentiiira!).


Tropeço, salto e dança

As últimas semanas no Brasil foram emocionalmente muito intensas. O último suspiro real de tranquilidade e relaxamento foi quando passei dez dias de férias em Blumenau durante outubro, longe o bastante da partida para não ser tão afetado por ansiedades e aflições. Após isso, muita coisa prática para resolver, e também uma grande sequência de despedidas. Conforme novembro minguava, a tensão aumentava. Encaixotar bagulhos e dormir em uma casa vazia. Dar um último abraço em quem você não sabe se ainda verá vivo. Ir para um jantar sabendo que será o último. Do mesmo modo, como bom neurótico, cresciam as dúvidas: como vou me virar lá? Como será morar numa casa nova que eu não escolhi? Será que dou conta? No final, ao mesmo tempo em que eu queria aproveitar ao máximo os minutos, estava também louco para embarcar de vez e tirar o peso da ansiedade dos ombros.

Assim, foi com um sorriso no rosto e uma certa sensação de liberdade que adentrei o portão de embarque, no sábado de manhã. O sorriso começou a morrer ao embarcar no avião intercontinental. Graças ao atraso no processo seletivo, não pude comprar a passagem com muita antecedência, e caí em uma empresa de baixo custo (Air Europa, não recomendo). Bancos apertados, nada de telinhas particulares para ver um filme. Além de nunca conseguir dormir em avião, a coxinha do café da manhã começou a sussurrar para minhas tripas que seria uma longa viagem. É, foi uma viagem de merda, em todos os sentidos.

Durante a conexão, em Madri, veio a temida imigração. Um brasileiro à minha frente conversava com uma menina sobre o seu doutorado sanduíche. Ao ser atendido, já foi mostrando seus documentos e permissões, para evitar problemas. Eu usei a super estratégia de todas as minhas viagens: disse "oi" e entreguei o passaporte. Alguns segundos e uma carimbada depois, segui adiante. Olhei para trás e lá estava o coitado, ainda mostrando folhas e tropeçando no inglês. "Noob", pensou uma pequena e maldosa parte do meu ser (ele passou no fim, não se preocupem).

Ao chegar em Frankfurt, esperei pela chegada da minha mala (completamente destruída), peguei o sobretudo, luvas e touca, e fui direto pegar o trem para Colônia. Na plataforma de embarque, o primeiro contato com o simpático céu cinzento, vento e chuvisco, e a primeira certeza: não tiro a barba de modo algum antes do verão. Aqui não é questão de estética, é de sobrevivência.

Chegando na estação, tudo o que eu não queria era arrastar minha mala quebrada pelo transporte público num domingo para chegar na PQP onde iria morar, então fiz um taxista feliz. Chegando lá, conheci a mulher que me hospedaria, junto com mais meio mundo, e sua casa enorme cheia de quartos e meandros. Chegando junto comigo, duas indonésias, e, já morando ali há alguns meses, um brasileiro e uma facção inteira da Yakuza. Em estado semi-zumbi e com a barriga ainda borbulhando, foi uma tarefa árdua socializar e sorrir durante o café de boas vindas oferecido por ela (muito simpática e receptiva, por sinal). Ela me mostrou o meu quarto, pequeno mas satisfatório para um período de alguns meses. Tomei banho sob um fio de água quente em um banheiro frio. Ao deitar na cama às quatro e meia da tarde, com o céu já escuro, portas batendo, pessoas andando pelo corredor, tive meu momento "o que fiz com minha vida?". Mas as 30 horas acordados chutaram a mente rebelde para longe e logo apaguei.

Entre algumas acordadas, dormi razoavelmente bem, estando funcional às sete e meia da manhã, hora de ir para o Carl Duisberg Center, o lugar onde faço o curso de alemão. Foi a primeira de várias longas viagens de uma hora ou mais, dentre ônibus, trens e trechos de caminhada no escuro (começa a amanhecer só depois das oito).

Se até o momento a história parece um desastre,não se preocupem: agora ela fica mais feliz, pois a vida logo entrou nos eixos. O curso de alemão começou bem: apesar de ser uma língua muito difícil e sem lógica, aprendê-la está sendo muito interessante (mais sobre isso no futuro). Minha turma de losers (isso é, pessoas sem conhecimento prévio de alemão) tinha apenas mais três pessoas, sendo que uma já não está mais, o que torna o aprendizado mais dinâmico. A carga horária é tranquila, com aulas entre 8:45 até 13:00, com mais um tempo flexível na tarde e noite para fazer tarefas e praticar.  O CDC está infestado de brasileiros (algo como dois terços dos alunos), um monte de graduandos vindos via Ciência Sem Fronteiras. Já no grupo de bolsistas de doutorado do DAAD que chegou comigo, só mais um brasileiro. Tivemos um tratamento diferenciado, no qual eles nos ajudam a fazer uma série de procedimentos burocráticos, como abrir conta no banco, fazer o registro de moradia na cidade, solicitar visto de permanência, etc. Em meio a tantas reuniões e atividades extra-aula, mal tivemos tempo para respirar na primeira semana, e os pequenos demônios mentais não tiveram muita oportunidade para pentelhar. Em pouco tempo eles passaram a ser soterrados pela nova rotina, e não mais tive dúvida de que tinha acertado ao vir aqui, mesmo com saudades do que tinha lá.

A parte mais difícil tem sido a adaptação à nova casa, de doze anos morando sozinho e próximo do trabalho/local de estudo, para uma moradia compartilhada longe pra cacete de tudo. Felizmente, parte disso vai se resolver, pois em Janeiro mudarei para um lugar bem mais próximo. É só torcer para não cair em uma casa de família cheia de regras, pois, convenhamos, não sou mais um gurizão de 19-20 anos recém-saído da casa dos pais. "Mas e o clima, Félix? Não é a pior parte?". Sim, amiguinhos o clima é uma bosta. Ou é muito frio, ou chove, e ver o azul do céu é uma bênção rara. Mas, até o momento, tem sido mais fácil de lidar do que eu imaginava.

Apesar de Colônia ser uma metrópole essencialmente econômica, ainda tem muita coisa legal para ver, desde resquícios do passado romano até obras modernas. Já tive oportunidade de passear por algumas cidades da redondeza também, sair com galera, etc., mas vou deixar para falar mais sobre a cidade e a vida na Alemanha em um momento posterior. Este texto era mais para descrever o momento de transição, enquanto as coisas ainda estavam frescas na minha cabeça. Também quis postá-lo agora para abrir caminho para mais alguns tradicionais textos de viagem felixianos, pois amanhã embarcarei em uma viagem de duas semanas pela Itália. Lá também é inverno, mas depois de três semanas com temperatura sempre abaixo de 10 graus, acho que nos 17 de Nápoles até vai rolar umas Havaianas...