quarta-feira, 26 de março de 2008

Vida diária?

Novas reflexões sobre vida e morte - 26/03/08


Ontem foi meu aniversário. Há exatos cinco anos, no mesmo dia 26 de março, inspirado pelo espírito de "um ano a menos de vida, um ano a mais de morte", eu sentei diante do computador para escrever "Morte Diária". Era um conto filosófico. Conto no sentido de que propunha e descrevia o desenrolar de uma situação: um cara sentado diante do PC, sentindo uma amargura imensa e precisando descarregá-la em forma de escrita. E filosófico no sentido de ter sido uma síntese das reflexões sobre o sentido da vida e da morte que vinham se acumulando no ano anterior. As conclusões filosóficas eram claras: pressupondo-se que a morte é o fim absoluto e definitivo da vida, esta não tinha "sentido", tanto menos a morte. Não havia porque viver, ou morrer, pois todas as realizações e pensamentos de uma pessoa se encerram com sua morte, e esta pode ser atingida a qualquer momento, sem permitir qualquer segunda chance ou arrependimento. Permanecer no primeiro estado era uma simples questão de inércia, enquanto pular para o outro, uma simples questão de escolha. Tais pensamentos se tornaram um dos guias de um sistema filosófico pessoal, sempre como uma sombra cobrindo qualquer outra atitude, escolha ou objetivo.

Semana passada, segunda feira. Um dia nada especial. Na hora do almoço, um estalo do nada. Não, não um fabuloso insight obscuro, uma revelação inesperada que fez uma luz do céu cair diretamente sobre minha cabeça, acompanhada de um coro celestial. Sabem quando há tempos parece que algum pensamento está se formando na nossa cabeça, e de repente ele simplesmente aparece em toda sua obviedade? Ele já está ali, mas por mil motivos a cabeça permanece nos velhos conceitos, até que *puf*, tudo muda.

O estalo foi simples e está aí, para quem quiser ver, notadamente na literatura científica. Tem como pressuposto admitir que a vida é um processo físico-químico que gerou um sistema que chamamos de "orgânico". E assim como os sistemas físico químicos evoluíram (no sentido de "mudaram com o tempo", nenhuma conotação de "melhoramento" aí) para gerar este sistema orgânico, o próprio evoluiu, mudou, diversificou-se, gerando uma miríade de variantes ao longo de bilhões de anos (entre 3,5 e 3,8, pelas estimativas atuais) que agora chamamos de "formas de vida" ou "espécies". Eventualmente, este processo gerou pelo caminho aquilo que chamamos de "mente", a capacidade de pensamento abstrato que, em uma determinada espécie de primatas, se desenvolveu de forma incomparável em relação às outras.

Admitimos, dentro da ciência, que o universo segue determinadas "regras", "princípios" ou "leis", que simplesmente fazem as coisas funcionar como funcionam, sem ter qualquer vínculo com aquilo que podemos chamar de "sentido" ou "objetivo". Faz sentido (perdão pelo trocadilho) pensar no "sentido" das leis da física? Qual o sentido da gravidade? Das forças fundamentais da física, da interação entre partículas, átomos, moléculas? As "regras" estão aí, gerando interações, processos, cujo resultado final nada mais é que o produto de tais interações e regras. Por que o céu é azul? Porque é a cor azul que tem o comprimento de onda que mais facilmente se dispersa na atmosfera. Se não fosse assim, ele poderia ser amarelo. Por que as coisas na Terra caem no chão? Porque corpos de grande massa atraem objetos para seu centro. Se não fosse assim, elas poderiam flutuar, como gatos com uma fatia de pão com manteiga nas costas.

Além das regras, existe na evolução dos sistemas o que chamamos de contingência. São coisas que não podem ser previstas, pois não são resultados óbvios e únicos das interações, mas coisas que poderiam ser de muitas formas. Por exemplo, um objeto derrubado vai cair no chão, é o resultado natural da interação do objeto com a gravidade. Mas por que temos cinco dedos? A resposta não poderia ser outra: porque não temos seis. Ou quatro. O peixe que deu origem aos animais terrestres tinha cinco raios ósseos em suas nadadeiras, que deram origem às mãos com cinco dedos dos animais (há mudanças posteriores, mas nosso estado "original" é da mão com cinco dedos). Se houvesse dez raios? Dez dedos, provavelmente. Isso mudaria o processo posterior? Certamente, e o resultado final poderia ser tanto um mundo exatamente igual ao nosso, mas onde eu estaria digitando com o dobro da velocidade, quanto algo radicalmente diferente (se não se formasse um polegar opositor nos primatas, por exemplo - tente executar algumas tarefas cotidianas sem um sar o dedão para ver...). Assim, muitas coisas dentro da evolução dos sistemas orgânicos poderiam ser explicadas desta maneira: são assim porque não são de outro modo. Não porque são "melhores" ou porque daquele jeito atingiriam um "objetivo" mais facilmente.

Aí vem o insight, possivelmente já bem óbvio para todos: a vida é um processo como qualquer outro, com bases físico-químicas. Sendo assim, é independente de qualquer pensamento humano sobre ela. Grosseiramente, podemos resumir este processo como um jogo entre replicação do sistema (reprodução) e sua evolução (as mudanças que surgem com o passar do tempo). A reprodução é uma propriedade básica dos sistemas orgânicos: uma cadeia de ácidos nucléicos (que formam nosso DNA e RNA) irá se replicar se o ambiente fornecer condições para isso, seja num tubo de ensaio ou numa espécie de pássaro. A vida não "precisa" de nada que nós, humanos, conceituamos como "sentido". Agora entendo melhor uma idéia que li no "Poema Imperfeito", do Fernando Fernandéz, há algum tempo: o "porquê" da vida é o "como" da vida. Não nos preocupamos em dar algum "sentido" à gravidade. O melhor modo de entender este processo é ver como ele ocorre, e não por que ele ocorre. A mesma coisa ocorre com a vida.

Meio anti-climáxico, não? Também achei, na verdade. Tanto tempo imerso na beleza do tormento humano diante de uma vida sem sentido, só para concluir que: sim, ela não tem sentido, mas isso é a coisa mais natural do mundo. Ficar indignado diante da vida sem sentido é igual a ficar puto com céu azul, por que se preferiria ele verde. Ou dizer "droga, como posso seguir sendo feliz num mundo onde as coisas caem no chão?!?!". Não parece uma revolta muito útil, hein?

E a mente humana na história? Este processo independente que é a vida gerou algo capaz de perguntar a si mesmo o porque de tudo isso. E é aí que vemos onde está o sentido da vida: simplesmente nas nossas cabeças. Tanto os "sentidos" convencionais (religiosos, místicos, filosóficos) quanto a própria falta de sentido são produtos do nosso pensamento abstrato, nosso raciocínio. Não refletem alguma grande verdade universal, uma lei equiparável às outras, que diga "a vida tem o objetivo X, esta aí para isto". E seguimos vivendo, nos reproduzindo e evoluindo, independente do que pensemos a respeito. É fácil verificar que nossa mente é apenas uma parte (uma das principais, é claro) do nosso organismo. Todas nossas atividades fisiológicas seguem funcionando quando dormimos, ou mesmo quando o cérebro vai pro espaço (pacientes com morte cerebral podem seguir respirando e batendo o coração por muito tempo, se continuarem sendo nutridos). E concluir "a vida não tem sentido!" não faz parar imediatamente nosso metabolismo. Nosso corpo segue funcionando independente do que queira a rebelde porção de nosso cérebro responsável pelo pensamento.

Mas é interessante pensarmos como a capacidade de raciocínio extremamente desenvolvida em nós consegue influenciar no processo. Por exemplo, a taxa de suicídios deve ser maior nos humanos que em qualquer outra espécie próxima. Mesmo a vida sendo aquele processo natural e sem sentido, podemos raciocinar que a morte não é tão assustadora e dar fim à nossa existência quando bem entendermos (mais ou menos - o medo diante da morte, mesmo por opção própria, é certamente um dispositivo do sistema orgânico para sua preservação).

Conclusões de tudo isso? A vida é bela e vamos ser todos felizes, em contrapartida com as conclusões negras e insípidas de "Morte Diária"? Neca. Desvinculada de conceitos humanos, a "beleza" e "alegria" da vida, assim com sua "frieza" e "falta de sentido", também estão só em nossas cabeças. Ainda são coisas que nos encantam na literatura, na produção intelectual e emocional derivada do pensamento abstrato humano. Por outro lado, muitas das conclusões originais das reflexões sobre vida e morte seguem valendo. O suicídio ainda é uma saída fácil para a vida. Um corpo morto ainda é apenas um amontoado de matéria orgânica, não mais a pessoa querida de antes. O que esta nova reflexão me leva a concluir é que não há porque ficar pensando no sentido da vida, nem se deve pensar que existe um e já se achou. A partir de agora, vou olhar para a vida assim como olho para o lento caminhar do sol pelo céu: se me deixa feliz porque é um dia lindo, ou triste porque não estou na praia, não importa. Ele vai seguir andando, indiferente a qualquer um de nós. Resgatando pensamentos de Stephen Jay Gould, no último parágrafo de seu "Vida Maravilhosa", talvez este seja o mais interessante dos universos concebíveis: um mundo indiferente a nossos pensamentos, onde podemos ser felizes ou tristes, não por conta de algum princípio universal maior, mas segundo nossas próprias escolhas.

5 comentários:

Flavia disse...

Gostei!
Faz pensar em muitas coisas...

A propósito: você tem "O Poema Imperfeito"?
Me empresta??

Anônimo disse...

blábláblá
blábláblá

FELIZ ANIVERSÁRIO!!!!

Thiago Duwe disse...

será que as pessoas vão se perguntar sobre o gato com a fatia de pão amanteigada nas costas??? heehheh...

ótimo texto véio. tô cada vez mais convencido que tens de largar esse papo de lecionar e escrever.

abraço!!
duwe.

Fábio Ricardo disse...

Velho, eu não sei se vais levar o que eu vou falar agora como um elogio ou um xingamento. Mas sinceramente? Essa é a coisa mais certa que tu já me disse na vida. Subisse mais um ponto no meu conceito, se é que isso ainda é possível.

Rodrigo Oliveira disse...

Grande texto. E se a vida ainda tem algum sentido, é resolver o lance do gato. Mas de verdade: curti. vc devia fazer aniversário mais vezes (mesmo ele sendo apenas algo da nossa cabeça, ele foi responsável por esse texto). Mas isso é coisa pra discutir com um copo de cerveja.